9 de outubro de 2024

FARTO. Das notícias cheias de gralhas, que omitem informação básica na pressa de ser o primeiro a dar a notícia. De comentadores políticos a comentar o que ainda não foi dito, nem feito, ou de que pouco ou nada se sabe. De políticos no activo comentar nas televisões e nos jornais. Das opiniões baseadas em «factos» que os factos desmentem sem que os jornalistas se dêem ao trabalho — e à obrigação — de os assinalar e corrigir. Das interrupções constantes aos entrevistados sem que haja outro motivo que não seja criar ruído. Da gritaria em que se tornaram os espaços televisivos de debates político e desportivo. Do jornalista ora na sua função, ora na função de comentador, ora nas duas ao mesmo tempo. Dos intermináveis directos sobre nada, que os políticos, por ausência de mediação jornalística, usam para dizer o que lhes convém e exploram com grande eficácia (que o diga o líder do Chega). Do jornalismo precário que se nota, e muito, no produto final. Do «jornalismo» que não se distingue do que se diz nas redes sociais que tantos jornalistas divulgam como sendo informação fiável. Do jornalismo que corre atrás do primeiro-ministro querendo saber se ele está bem disposto. Do estado a que o jornalismo chegou.

28 de setembro de 2024

PÓLVORA SECA. Desaparecida a propaganda dos Amigos de Olivença, pelo menos da minha caixa de correio, eis que o ministro da Defesa resolveu desenterrar o assunto. Começou por dizer Nuno Melo que Olivença «é portuguesa», mas no dia seguinte, diante o silêncio dos seus pares, fez uma adenda: disse-o a título pessoal, pelo «não vincula o Governo» a que pertence. Presidente e Governo recusaram comentar. Os Amigos de Olivença aproveitaram a ocasião para dizer das suas razões. A presidente da Junta da Extremadura também disse das suas: Olivença é espanhola desde 1801 e «vai continuar a ser». O constitucionalista Jorge Miranda pronunciou-se para acalmar os mais assanhados. O professor Renato Epifânio chamou a atenção para o facto de não haver, em Olivença, qualquer «movimento político-social relevante de reintegração em Portugal». Ao que parece, o episódio morrerá por aqui. Tirando meia dúzia de gatos-pingados, ninguém quer saber de Olivença, muito menos meter-se em sarilhos. A questão permanece, portanto, em banho maria, pelo que portugueses e espanhóis que lá vivem continuarão a viver como habitualmente. Antes assim.

16 de agosto de 2024

O REI VAI NU. Surpreende ver académicos conservadores sugerirem que Donald Trump deve usar as diferenças políticas para combater a sua adversária em vez de se limitar a insultá-la, uma estratégia, segundo eles, que não lhe trará um só voto. Surpreende porque eles sabem que não há diferenças políticas entre os dois. O que há é uma candidata (Kamala Harris) com um projecto político e um Trump com um projecto pessoal, agora ainda mais obcecado com a sua própria pessoa porque, com a justiça à perna em múltiplos casos, pode acabar na cadeia caso não vença. O projecto de Trump foi, desde sempre, o poder pessoal a qualquer preço, agora muito agravado com a urgência de salvar a pele. A ideia de que ele é conservador é pura fantasia. Apresenta-se como conservador mas poderia apresentar-se como liberal, posiciona-se contra o aborto mas poderia defendê-lo. O que verdadeiramente o define é a sua admiração por ditadores, como Putin e Kim Jong-un, porque inveja o poder que eles têm. Isso mesmo, o poder. Como bem sabem, aliás, os académicos de que falo, que mesmo assim se prestam aos mais toscos malabarismos para esconder que o rei vai nu.

28 de julho de 2024

TRUMP PORQUE SIM. A direita pensante defende que Trump representa o falhanço da esquerda, um argumento, em parte, verdadeiro. Como Trump é um ser desprezível, mesmo para quem o apoia, espera que o argumento baste, por si só, para o defender, desobrigando-a de melhores argumentos. Como é óbvio, os erros da esquerda, mesmo os verdadeiros, não tornam Trump melhor, e corrigir os falhanços da esquerda com a direita de Trump será um falhanço maior. Não se vê quem, na direita pensante, defenda Trump pelas qualidades que terá (por aquilo que fez e não fez, por aquilo que é e não é), e como as qualidades que terá possam corrigir o falhanço da esquerda, aliás muitíssimo exagerado. Quero acreditar, ainda assim, que a direita terá motivos maiores. Mas quais? Como ainda não vi quem os mostrasse, só posso concluir que não abundam. Dizem alguns que Trump teve méritos enquanto presidente, mas não dizem quais. Além de confrangedor, tamanha escassez de argumentos talvez signifique que não os tenham. O ponto dos ditos pensantes é penalizar a esquerda a qualquer preço, e isso lhes basta. Mas não basta criticar os erros da esquerda. Há que demonstrar as virtudes da direita de um modo geral e as de Trump em particular. E as «virtudes» da direita americana devem-se, nos últimos anos, a uma personalidade chamada Trump, que levou o Partido Republicano para um terreno impensável ainda há pouco, deixando-o refém da sua exclusiva vontade, os seus membros com vergonha na cara a abandonar o partido, e os restantes a curvar a espinha enquanto sussurram pelos cantos o que Maomé não diria do toucinho. É isto o que a direita pretende?

26 de junho de 2024

JUSTIÇA. Funciona tão mal a justiça que se torna difícil tomar como sério o que faz e o que não faz. O timing escolhido para as buscas ao Ministério da Saúde, até há pouco chefiado pela agora deputada europeia Marta Temido, poder-se-á, em termos operacionais, justificar, mas quem acredita que o timing escolhido foi mera coincidência e não uma tentativa de penalizar a então candidata ao Parlamento Europeu? Quem manda na justiça continua a fazer tudo, mas tudo, para estar nas bocas do mundo, sempre pelos piores motivos, e não faz nada, mesmo nada, para mudar o que está mal. Os que lá mandam continuam a agir como se não tivessem contas a prestar aos cidadãos, apesar dos insistentes pedidos de explicações vindos de todos os lados. O «caso» da ex-ministra da Saúde é só mais um que não pode ser ignorado. Como não podem ser ignoradas as escutas em segredo de justiça divulgadas pela CNN, ainda por cima sem qualquer relevância para a investigação de que estará a ser alvo, obviamente destinadas a fragilizar a candidatura de António Costa à presidência do Conselho Europeu depois de já o terem obrigado a demitir-se de primeiro-ministro alegando uma suspeição que ainda hoje, meio ano depois, ninguém sabe de quê. Para cúmulo, julgam os mandantes que não têm de dar explicações. Limitam-se a abrir uma investigação para «apurar a origem das fugas» sabendo de antemão que, como os casos passados o demonstram, a investigação vai dar em nada. Pelo que se passou até hoje, não tenho a menor dúvida de que a PGR está apostada em destruir, pelo menos politicamente, o ex-primeiro-ministro António Costa. Se já sabíamos que a justiça funciona mal, demonstrou agora que não hesita em intrometer-se no que não deve. Pior seria difícil.

18 de março de 2024

CHEGA. Todos os partidos políticos com assento parlamentar parecem apostados em afastar o Chega do próximo Governo. A coisa soa bem à primeira vista, mas à segunda, e apesar das aparentes boas intenções, nem tanto. Afastar o Chega do poder terá, mais cedo do que tarde, consequências nefastas para o já debilitado regime democrático. Fazendo-se de vítima, o partido de Ventura não deixará de capitalizar com a marginalização, exigindo em próximas eleições, provavelmente mais cedo do que seria desejável, os votos necessários para que não dependa de terceiros para ser governo. Não tenho varinha mágica para adivinhar o que o futuro dirá. Parece-me, contudo, que seria bom comprometê-lo de algum modo com o próximo governo, secando-lhe assim a veia do protesto — até ver a única coisa que o move e lhe valeu quatro vezes mais deputados no parlamento. Luís Montenegro partiu para a campanha eleitoral jurando que jamais faria uma coligação com o Chega. Na minha opinião, um erro monumental. Se agora lhe fica bem manter o que prometeu, parece-me caro o preço que terá de pagar. O PSD, mas, sobretudo, o país.

14 de fevereiro de 2024

SINDICATOS DA DESORDEM. Por razões que me parecem óbvias, sempre olhei com desconfiança a existência de sindicatos nas polícias. Foi, por isso, sem surpresa que assisti à postura que os sindicatos têm vindo a adoptar nas últimas semanas. Em troca do que dizem ser os interesses legítimos da classe, de que não tenho motivos para duvidar, o Sindicato Nacional da Polícia, um dos 19 que representa as polícias, não só recusou cumprir os deveres que lhes estão atribuídos como ainda ameaçou boicotar as legislativas de 10 de Março caso não veja atendidos os seus desejos. Não será necessário ser visionário para intuir que mais dia, menos dia viesse a concretizar-se um cenário destes. Afinal, os sindicatos das polícias funcionam com a mesma dinâmica dos demais, e a dinâmica dos demais aplicada à PSP ou a outras forças de segurança põe em causa a segurança nacional e o Estado de Direito. É preciso ver que as polícias têm deveres que outros não têm, o primeiro de todos cumprir as missões que o Estado lhes confiou e juraram cumprir. Descumprindo esses deveres, até ver impunemente, quem quer saber das reivindicações das polícias?

17 de janeiro de 2024

O CANTO DO CISNE. Ouvidas as teorias que correm acerca do que se deve ou não fazer para acudir à crise que vai na Global Media, proprietária, entre outros, do DN, JN e TSF, não vejo como se possa encontrar uma solução satisfatória de modo a salvar, pelo menos, os títulos de referência. Como outras empresas privadas, a Global Media opera dentro das regras do mercado, e o mercado costuma corrigir com eficácia os seus próprios erros — e foram demasiados os erros cometidos pelos vários patrões que passaram pelo grupo cujo colapso agora se teme. Há vários exemplos passados que o demonstram. O desaparecimento de jornais como O Comércio do Porto, O Primeiro de Janeiro, o Diário Popular, A Capital ou O Independente não pôs em perigo a democracia, motivo agora invocado para não se deixar cair a Global Media. Depois, que solução haverá que não seja o Estado, directa ou indirectamente, a pagar a conta? E quem acha que o Estado deve, neste caso, substituir-se aos privados? Tirando os trabalhadores do grupo, que aguardam que lhes dêem o que lhes pertence, não se vê quem. Por razões óbvias, que os jornalistas sabem melhor que ninguém, não há almoços grátis, e sairia caro ao país ser o Estado pagá-los. A solução, a haver, passa pelos privados, pela compra do todo ou das partes. Privados que até ver não se vislumbram, pelo que não se antevê um final feliz para quem lá trabalha. Já se vai ser uma perda para a democracia e o jornalismo se não vencer a crise, não tenho tanta certeza.

19 de novembro de 2023

OPERAÇÃO RODA LIVRE. É sabido que a Justiça é célere a acusar, morosa a provar e desastrosa a condenar. Como o jornalista Pedro Tadeu lembrou a semana passada com uma dezena de casos, os exemplos sobejam. Qual é o problema de o presidente do parlamento pedir esclarecimentos ao Ministério Público (MP) sobre a Operação Influencer? É uma pressão inaceitável? Pressão pode ser, inaceitável é que não vejo porquê. Tudo o que se sabe até hoje é que o primeiro-ministro, que se demitiu alegando estar sob suspeitas sobre a sua pessoa, está na mira do MP, que não esclareceu os portugueses por que motivo. Não só não esclareceu como pôs a circular a transcrição de escutas telefónicas onde António Costa Silva, ministro da Economia, é identificado como sendo António Costa, primeiro-ministro — um erro grosseiro que custa a crer que tenha sido inocente. Depois, não se percebe que o MP tenha mandado prender cinco arguidos durante vários dias e pedido ao juiz de turno que lhes fosse imposta prisão preventiva, e o juiz não só não viu motivo para tanto como os libertou em troca de cauções irrisórias para quem terá cometido os crimes de que o MP suspeita. O MP não pode continuar a esconder impunemente a informação que é de interesse público, alegando o sempiterno segredo de justiça — graças ao qual, através das indispensáveis (e criminosas) fugas de informação, só ficamos a saber o que as partes querem que se saiba. Aos órgãos de soberania exige-se, antes de mais, transparência. Depois, que prestem contas. A procuradora-geral da República tarda em fazer o que já devia ter feito.

20 de outubro de 2023

FOG OF WAR. Foi Clausewitz quem terá cunhado a expressão «fog of war» (nevoeiro de guerra), que usou para descrever a incerteza no campo de batalha (as capacidades do inimigo, as condições meteorológicas, o movimento das tropas, a falta de informação, etc.) que dificulta, e muito, a tomada de decisões e pode levar a julgamentos errados. Quase dois séculos depois, e apesar de os mecanismos para apurar os factos terem evoluído bastante, cá estamos nós, após mais um episódio do conflito israelo-palestiniano, em pleno «fog of war». Porque não se vê a maior parte do que se passa no terreno, porque as partes envolvidas tentam passar o que lhes convém, porque a informação e a desinformação são armas de guerra. Como não bastasse, os media, incluindo os media ditos de referência, tomam partido, confundem mais que esclarecem, dão como provados «factos» que não existem, omitem e distorcem de modo a servir as suas agendas, e fazem passar por factos o que são meras opiniões — as opiniões dos jornalistas e de quem lhes paga os salários. Quem foi o autor — ou autores — do ataque a um hospital da Faixa de Gaza, de que terão resultado, segundo o Hamas, centenas de mortos, ou «algumas dezenas», segundo a France-Presse? O Hamas e a Jihad Islâmica acusam Israel. Israel diz que foi um acidente provocado pelo lançamento mal sucedido de um rocket da Jihad Islâmica (grupo que compartilha com o Hamas o objectivo de destruir Israel), e apresentou o que diz serem provas. Quem fala verdade? Quem mente? Há que dizer que o Hamas é uma organização terrorista, e que Israel, goste-se ou não de quem o governa, é um estado de direito, um país democrático — e eu sou contra o terrorismo e por quem se guia pelos valores que eu defendo. Ao contrário do que vejo (nunca vi tantas certezas sobre um assunto tão complexo), não tenho uma visão fechada sobre a origem e o desenrolar do conflito israelo-palestiniano. Parece-me, no entanto, que a solução de dois Estados independentes a viverem em paz lado a lado, que por duas vezes esteve perto de se concretizar e os fanáticos de ambos os lados fizeram abortar, seria a melhor para israelitas e palestinianos. Infelizmente, o 7 de Outubro de 2023 destruiu anos de negociações e colocou a discórdia entre Israel e a Palestina no ponto zero. Resta esperar que o conflito não vá mais longe do que já foi.

24 de setembro de 2023

PANTEÃO OU NÃO. A melhor forma de homenagear um escritor é lê-lo. Para isso há que publicar-lhe a obra, divulgá-la, e estudá-la se for caso disso. Eça de Queiroz não só está entre os nossos maiores escritores como entre os maiores da língua portuguesa. Considerando que no Panteão estão algumas figuras consideradas menores, não escandalizaria que Eça fosse para o Panteão. Mas será que Eça apreciaria a ideia? Com certeza que ir ou não ir para o Panteão não acrescenta ou diminui a grandeza da obra. Também não será por aí que será mais lido, mais divulgado, mais estudado. Por que insistem, então, no Panteão? Eis um mistério que talvez nem Eça conseguisse explicar.

30 de agosto de 2023

UM PÉSSIMO EXEMPLO. Não contem comigo para a beatificação da coitada que terá sido sexualmente abusada por um superior hierárquico, no caso o presidente da federação espanhola de futebol. Quem não viu que o beijo de Rubiales a Hermoso surgiu no calor dos festejos de um título mundial e que a vítima começou por desvalorizar? Quem não viu que o agressor pediu imediatamente desculpa? Claro que o sujeito teve um comportamento censurável, mas sendo o momento de grande euforia, a que sempre se juntam doses de irracionalidade, desculpas devidas e assunto encerrado. Não foi assim. De um fogacho passou-se a um incêndio, confundiu-se a estrada da Beira com a beira da estrada, e um bode expiatório veio mesmo a calhar. É um facto que vigora uma cultura machista no desporto feminino, onde há comportamentos abusivos e mesmo casos de polícia. Mas o caso do beijo não é um bom exemplo, muito menos motivo para um auto-de-fé.

22 de agosto de 2023

COMIDAS. Quando havia rusgas diárias da ASAE a confiscar galheteiros com azeite sem rótulo de origem e maçãs que não obedeciam aos desmandos da União Europeia temi que a gastronomia dos nossos avós tivesse os dias contados. Felizmente, enganei-me. As feiras gastronómicas que hoje se fazem por todo o lado demonstram não só que não morreu como ressuscitaram outras comidas quase extintas. Mas nada contra a feijoca embrulhada em repolho ou a posta de congro com ovos de formiga. Cada um come o que gosta e o que pode. Como sou mais feijoadas e arrozes, cabritos e bacalhaus, regozijo-me com o renovado interesse na nossa comida. Com certeza que algumas receitas não farão bem a ninguém. Mas isso não deverá ser motivo para o poder meter o nariz no prato de cada um. Se o Estado se preocupa com a saúde dos portugueses, alerte-os para as maleitas que possa haver e deixe que cada um decida por si.

12 de julho de 2023

TRUMPISTAS. Tirando excepções, há três espécies de apoiantes de Trump: os que votam no candidato do Partido Republicano mesmo que ele seja uma besta; os que não estão informados sobre quem votam e por isso acreditam ser verdadeiras incontáveis mentiras e plausíveis as teorias mais absurdas; e os que, estando informados, votam na criatura porque a criatura sente um indisfarçável prazer em insultar os adversários que eles, por medo ou pudor, não se atrevem. O ex-presidente americano está acusado de ter cometido mais de sete dezenas de crimes, e é suspeito de muitos mais. Como diz a lei e o senso comum, está inocente até prova em contrário, prerrogativa que os apoiantes de Trump não concedem aos seus adversários, que geralmente tratam por criminosos mesmo sem existirem suspeitas minimamente fundamentadas. É vê-los por aí a dizer que os adversários são pedófilos que matam criancinhas para lhes beber o sangue, a jurar que a Covid nunca existiu e a vacina foi inventada para nos controlar, e de um modo geral a papaguear toda a espécie de teorias de modo a alimentar o ódio que sentem por quem não é como eles. Já os não informados e os que se dizem informados, os primeiros repetem as mentiras da seita porque pertencem à seita, e os segundos alternam a indigência com a boçalidade. O que mais espanta neste cenário grotesco é que passaram seis anos para o conhecer por dentro e por fora de modo a concluir, sem esforço, que o sujeito é imprestável. Pior: se nos quatro anos em que foi presidente foi pior que se antevia, não será difícil imaginar o que nos espera se for reeleito. Será um milagre que o consiga. Mas também seria um milagre em 2016, e a verdade é que, perante a surpresa geral, o milagre aconteceu.

13 de junho de 2023

QUE ASSIM SEJA. Donald Trump foi sexta-feira acusado pela justiça americana de ter cometido 37 crimes devido a posse ilegal de documentos classificados (sobre armamento nuclear, operações militares, potenciais vulnerabilidades dos EUA e outros segredos de Estado) e posterior recusa em devolvê-los. A ser condenado, a lei prevê décadas de prisão. Isto depois de já ter sido acusado, em Abril, de ter cometido 34 crimes de falsificação de documentos de modo a comprar o silêncio de uma actriz porno e a encobrir outros crimes de modo a não ser prejudicado na corrida à Casa Branca em 2016; e de ter sido condenado a pagar cinco milhões de dólares por agressão sexual. Faltam ainda as acusações que hão-de vir da Georgia (tentativa de mudar os resultados eleitorais a seu favor) e de Washington DC (invasão do Senado para impedir que os resultados eleitorais das Presidenciais de 2021 fossem oficializados). Como se costuma dizer, Trump é inocente até prova em contrário. E está a ser vítima de «caça às bruxas», uma novela por ele inventada para consumo da seita e à custa da qual tem embolsado milhões. Mas se fosse um cidadão comum o acusado de estar metido nestas alhadas, estaria, seguramente, em prisão preventiva. A acusação formal, conhecida hoje num tribunal de Miami (onde esteve formalmente detido), confirmou os crimes de que é acusado, acrescentou as medidas de coação, e ficou-se a saber que Trump se declarou «não culpado». O futuro dirá o desfecho. Mas a abundância de provas e a gravidade dos crimes de que é acusado não deixam margem para dúvidas: não vai acabar bem para ele. Assim sendo, que assim seja.

9 de maio de 2023

JORNALEIRISMO (3). Depois de incontáveis ameaças explícitas durante meses, o presidente da República quis remodelar o Governo na praça pública. O resultado é conhecido: o primeiro-ministro recusou-se a fazê-lo, e o presidente perdeu a cabeça. Os comentadores (e os jornalistas da área política de um modo geral) reagiram com um misto de espanto e indignação. Segundo eles, Marcelo Rebelo de Sousa foi «humilhado» por António Costa. O jornalista Miguel Pinheiro escreveu, pouco antes deste episódio, o seguinte: «(...) ao contrário do que muitas vezes pensam governantes e líderes partidários, os jornalistas não fazem política — fazem, como o seu próprio nome indica, jornalismo.» Foi esta a reacção do director-executivo do Observador a um comentário do primeiro-ministro, que pouco antes tinha dito não ter os media por sua conta de modo a dizer o que lhe apetece. Mas Miguel Pinheiro sabe bem que não é esse o jornalismo que se pratica na generalidade das redacções, especialmente na área do jornalismo político, onde os jornalistas misturam factos e opiniões que depois fazem passar apenas por factos. E os comentadores, que alternam o jornalismo puro e duro com a análise, mais parecem comiceiros que analistas. Sim, os jornalistas da área polícia fazem tudo menos jornalismo, e os exemplos abundam. Quem ganha com isso, não sei. O jornalismo decerto não é. O país ainda menos.

1 de abril de 2023

A FERA ENCURRALADA. Al Capone liderou um bando que se dedicava a toda a espécie de actividades criminosas — apostas, agiotagem, prostituição, contrabando de bebidas alcoólicas, etc. Apesar dos múltiplos crimes de que era suspeito, incluindo crimes de sangue, foi condenado a 11 anos de prisão por fugir aos impostos. Donald Trump foi presidente dos Estados Unidos durante um mandato, tendo perdido o segundo por sete milhões de votos. Apesar de 60 e tal tribunais não terem encontrado quaisquer irregularidades, Trump ainda hoje contesta os resultados, e apesar de saber que tinha perdido (admitiu-o em privado no próprio dia das eleições), incentivou os seus apoiantes a impedir que o Congresso oficializasse os resultados, o que por pouco não ocorreu. Embora a procissão vá no adro, Trump acaba de ser indiciado por vários crimes (fala-se em mais de três dezenas) decorrentes do suborno de uma actriz pornográfica. Tal como Al Capone, os mais leves de todos. Correm, porém, além de outras menores, mais três investigações: por incentivo à invasão do Capitólio visando impedir que o Congresso oficializasse o resultado das presidenciais de Novembro de 2021; por pressão junto dos responsáveis eleitorais da Geórgia para que revertessem a derrota eleitoral sofrida naquele Estado; e por retenção de documentos classificados na sua mansão da Flórida. Três casos de que resultarão penas mais duras se for acusado e condenado. Trump alertou, ainda antes de ser acusado, para um um cenário de «morte e destruição» caso venha a ser acusado, e incentivou os seus apoiantes a protestar caso isso suceda. Porque as actuais acusações e as que vierem se destinam a impedir que ele regresse à Casa Branca em 2024 — logo o sistema judicial faz parte do que ele designa por «caça às bruxas» destinado a liquidá-lo politicamente. Como a sua trajectória política demonstra, desde logo pela tentativa de golpe de Estado de Janeiro de 2021, Trump fará tudo o que for preciso para impedir que isso suceda. Antes fê-lo para se manter no poder, agora fá-lo-á para salvar a pele. Temos, portanto, a fera à beira de ficar encurralada, e se dantes já era perigosa, imagine-se encurralada.

15 de março de 2023

PECADORES (2). Conhecidos os resultados da comissão que investigou os crimes de natureza sexual praticados por eclesiásticos da Igreja Católica (IC), exige-se que os prevaricadores sejam expulsos da instituição. Acontece que o presidente da Conferência Episcopal, o bispo José Ornelas, já veio dizer que será necessário provarem-se os crimes para haver expulsões, contrariando as instruções do Vaticano para este tipo de casos. Assim sendo, tendo em conta a comprovada incompetência da Justiça para julgar em tempo útil qualquer cidadão que possa defender-se, a dificuldade de fazer prova em casos de abuso sexual e a escassa vontade da IC em colaborar, esperemos sentados. O Episcopado anuncia a criação de uma «comissão independente» dentro da Igreja para dar seguimento aos trabalhos da comissão anterior. Como se adivinha, vai dar em nada. A hierarquia da IC só está interessada em conter os danos, e nem as críticas dos seus membros a farão mudar. As indemnizações, a haver, como houve noutros países, devem ser pagas pelos prevaricadores. Que a hierarquia tenha encoberto, durante décadas, as centenas de crimes que ora se conhecem, não interessa. O que interessa é dizer que tudo irá mudar para que tudo fique na mesma.

15 de fevereiro de 2023

PECADORES (1). Os mandantes da Igreja Católica sempre gostaram de pregar, como aparente humildade, que a Igreja a que pertencem é feita de pecadores. De facto, nota-se bastante. Como não chegassem a Inquisição e outras misérias passadas, todos os dias somos confrontados com novos episódios escabrosos, no caso em apreço ocultados pelas chefias durante décadas. O que inicialmente pareciam excepções, sabe-se agora que são mais do que se supunha. Vejamos, apenas, o caso português, que esta semana ficamos a conhecer com a divulgação dos resultados de uma investigação aos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica. Quase cinco mil menores foram vítimas de abusos sexuais entre 1950 e 2022, um terço dos quais com idades entre os dois e os nove anos — números, como é óbvio, muito longe da totalidade dos casos existentes. Dos cinco mil, apenas 25 dos 512 testemunhos recolhidos pela comissão foram enviados para o Ministério Público, justificando a comissão tão reduzido número devido à prescrição de grande parte dos casos, por um lado, e ao anonimato das vítimas, por outro. Setenta e sete por cento das vítimas detectados pela comissão nunca apresentaram queixa à Igreja, e só 4% fez queixa judicial. Os abusos, cometidos maioritariamente por padres, aconteceram, sobretudo, em seminários, colégios internos, confessionários, sacristias ou na casa dos padres, havendo ainda casos a registar em agrupamentos de escuteiros. O pedopsiquiatra Pedro Strecht, que chefiou a investigação, alerta que não se deve confundir a parte com o todo. O problema é que são tantas as excepções que se torna difícil ver a regra. Bem ou mal, justamente ou injustamente, os pastores da Igreja Católica portuguesa arriscam-se a ser vistos pela generalidade das pessoas como suspeitos de malfeitorias da pior espécie até prova em contrário.

25 de janeiro de 2023

TRÊS MESES. A Polícia Judiciária (PJ) demorou três meses a localizar e prender o autor de uma carta ao Presidente da República em que ameaçou matá-lo caso não lhe desse um milhão de euros. Leram bem: três meses. Isto depois de a PJ saber, desde a primeira hora, a identidade do sujeito, que não só se identificou na missiva como ainda forneceu dados bancários onde o dinheiro deveria ser depositado. E, sabe-se agora, pela voz do director da PJ, que o sujeito é perigoso e tem antecedentes criminais. O episódio prestar-se-ia ao anedotário se não fosse verdadeiro. Mas até uma anedota precisa de factos verosímeis para cumprir a função, e demorar três meses a fazer o que se faria em três dias soa pouco plausível.

11 de janeiro de 2023

OS DONOS DA BOLA. Quem segue de perto as andanças da FIFA e as competições que ela promove não achará novidades, mas não há como a cronologia a pô-las em perspectiva. O documentário «FIFA Uncovered» (poder-se-á traduzir por «FIFA a descoberto»), na Netflix desde Novembro, faz um retrato muito instrutivo sobre as práticas dos seus dirigentes desde os primórdios da organização. Eleições fraudulentas, atribuição de competições em troca de subornos, lavagem de dinheiro, corrupção generalizada. Eis, até há pouco, as práticas correntes da FIFA desde a sua fundação, embora duvide que os hábitos da prepotência e da roubalheira se mudem só porque uns quantos caíram nas malhas da justiça. Portugal é candidato a organizar o Mundial de 2030, juntamente com a Espanha e Ucrânia. Daí a romaria ao Qatar das mais altas figuras do Estado — presidente da República, presidente da Assembleia da República e primeiro-ministro. Dinheiro que possa competir com a Arábia Saudita, também candidata, não temos. Mas pode ser que a FIFA queira melhorar a imagem, mostrando que não se move apenas pelo vil metal.

14 de dezembro de 2022

ASSUSTADOR. Os planos de Elon Musk para o Twitter pouco me importam. O que realmente me importa (e assusta) é ver um privado com um papel preponderante num conflito militar, no caso o que opõe a Ucrânia à Rússia. Musk fornece as comunicações por satélite à Ucrânia, ao que dizem cruciais para o desfecho do conflito. Se neste caso me parece estar do lado certo, imagine-se quando não estiver. É um facto que as guerras de hoje são feitas, em parte, por forças privadas, cujas actividades decorrem longe da vista e as regras são a ausência de regras. Mas o caso Musk ganhou dimensão tal que os governos vão ter que agir legislando. Brinquedos destes são demasiado perigosos para estarem nas mãos de privados, ao sabor dos interesses e dos humores de quem os possui.

29 de novembro de 2022

A FIFA E A HIPOCRISIA. Não é verdade que não tenham havido protestos quando ficou a saber-se que o Qatar tinha sido escolhido pela FIFA para sede do Mundial de 2022. O problema é que não passaram de fogachos e se limitaram à imprensa desportiva. Agora, que o assunto está na ribalta, toda a gente protesta, porque agora os protestos têm o impacto que dantes não tinham. Serão hipócritas as críticas à forma como o Qatar trata os direitos humanos, como disse o presidente da FIFA. Mas quando um organismo que lidera o futebol mundial chega ao ponto de atribuir uma prova como o Mundial a um país que, tirando as infraestruturas desportivas, hoteleiras e rodoviárias, não cumpre os seus próprios objectivos para sediar um evento do género porque os seus mais altos dirigentes se deixaram corromper, mais valia estar calado. Hipócritas ou não, os protestos em cena no Qatar são bem-vindos e muito oportunos.

7 de novembro de 2022

DESONESTIDADE. Rui Ramos escreveu que «os políticos (…) perceberam que diabolizar os adversários é uma maneira fácil de arranjar votos». Deu um exemplo que diz ser «óbvio»: «Atormentado pela inflação, não (..) ocorreu [ao Partido Democrático] nada de melhor do que descobrir que afinal o Partido Republicano tinha sido fundado e é dirigido por Hitler.» Procurei e não vi isto em lado nenhum, mas acredito que esteja a inventar. O curioso é que o historiador tenha pegado talvez no único exemplo que conhece para tentar demonstrar que o ódio é uma coisa de democráticos contra republicanos, quando os factos dizem precisamente o contrário. O colunista do Observador certamente que não ignora que o actual clima de ódio que se vive nos EUA começou com a candidatura de Trump à presidência, que depois foi multiplicado pelos acólitos. Não é uma opinião. Há dezenas de factos que o comprovam, e Rui Ramos sabe bem disso. Ilustrar o raciocínio da diabolização dos adversários políticos usando uma excepção vinda do campo democrático em vez da regra constituída por dezenas de casos oriundos do campo republicano é desonestidade intelectual.

21 de outubro de 2022

CRISTALINO. O Presidente da República pediu ao parlamento que clarifique a lei das incompatibilidades dos titulares de cargos públicos. Porque a lei das incompatibilidades, diz ele, está cheia de «remendas das remendas», que a tornam difícil de aplicar. Não conheço a lei em causa, muito menos se as alegadas incompatibilidades de pelo menos quatro ministros constituem, ou não, matéria para clarificação. O que julgo saber é que sempre que é necessário aplicar uma lei proveniente da Assembleia da República é preciso pedir um parecer a um gabinete de advogados. Porque a lei, de facto, nunca é clara. E não é clara porquê? Por incompetência de quem a fez e desleixo de quem a aprovou? Também. Mas não é clara, sobretudo, porque convém a muitos que não seja clara. Aos grandes gabinetes de advogados, desde logo, que assim têm uma mina inesgotável. E a quem tem poder, político ou outro, que assim explora a seu favor as deficiências da lei. Pelo menos isto é cristalino.

12 de outubro de 2022

O BOTÃO. Conta-se que o general Milley, chefe das Forças Armadas na administração Trump (que Biden manteve no cargo), fez o que havia a fazer para que Trump, desesperado pela derrota nas presidenciais de 2020 (que nunca assumiu), fosse impedido de accionar o «botão» nuclear. E que não sei quem durante a administração Nixon tomou medidas mais ou menos iguais para a eventualidade de Nixon, obrigado a demitir-se, cometer idêntica loucura. Espero, por isso, que haja um plano para deter Putin, ou que alguém na cadeia de comando recuse obedecer-lhe. Afinal, sempre será mais fácil sobreviver à desobediência que ao apocalipse.

28 de setembro de 2022

CORRUPÇÃO NA JUSTIÇA. Passou praticamente despercebida a notícia do Público dando conta de que um quarto dos juízes portugueses acredita que há corrupção na justiça, mesmo que «muito raramente». «A troco de dinheiro, vantagens não monetárias ou outros favores», prossegue a notícia, citando um inquérito aos magistrados sobre a avaliação que fazem da sua independência, individual ou de todo o sistema. «Houve distribuição de processos a juízes à revelia das regras ou dos procedimentos estabelecidos», diz ainda o inquérito. Ora, se um quarto dos juízes reconhece a existência de corrupção na instituição, o número será, certamente, maior. Ou seja, se a imagem da justiça já não não era boa, piorou depois desta revelação. E quem são, afinal, os juízes corruptos? Como só conhecemos dois ou três casos, não sabemos — logo todos estão sob suspeita. Todos querem resolver os problemas na justiça — os operadores judiciais, os governos, os políticos, etc. O problema é que, na prática, ninguém está verdadeiramente interessado em resolver. Continuamos, portanto, a ter uma justiça para quem pode comprar, outra para quem não pode.

16 de agosto de 2022

O TEMPO DA JUSTIÇA. Escrevi, logo nos primeiros meses de Presidência, que Trump iria acabar na cadeia, mas nunca me passou pela cabeça que demorasse tanto. Cinco anos e meio passados sobre a tomada de posse e mais umas dezenas de atropelos à lei, o ex-presidente continua por aí a espalhar mentiras, a insultar meio mundo, e a cometer toda a espécie de ilegalidades. As autoridades policiais anunciaram agora uma busca à sua residência, de que resultou a apreensão de documentos que acreditam servir para o acusar de espionagem, obstrução à Justiça e destruição ou ocultação de documentos. Como não são meros casos de polícia, o tempo da justiça será mais demorado. Mas não me passa pela cabeça que a justiça não fará o que dela se espera, apesar das ameaças de que está a ser alvo. A justiça não é perfeita, bem sei. Mas estou convencido de que a justiça americana é das que melhor funciona. Tenho, por isso, razões para crer que nada a demoverá.

19 de julho de 2022

DO MELHOR. 

Blood River: A Journey to Africa’s Broken Heart
, originalmente publicado em 2007 e 10 anos depois em português com o título Rio de Sangue: Uma Aventura Apaixonante no Coração de África, é um dos poucos livros de viagens de autores contemporâneos que vale a pena ler. Entusiasmado pela ideia de replicar a expedição ao rio Congo do escocês Henry Morton Stanley, considerado um dos maiores exploradores de todos os tempos e que em 1878 publicou Through the Dark Continent (em Portugal editado mais de um século depois sob o título Através do Continente Negro), o inglês Tim Butcher publicou uma reportagem (também pode ser lido como relato de viagem) memorável que se lerá de um trago caso haja disponibilidade para isso. Percebe-se por que John le Carré o considerou uma obra-prima.

6 de julho de 2022

SUICÍDIO EM DIRECTO. Assisti ao patético pedido de desculpas do ministro Pedro Nuno Santos, aparentemente por ter feito o que não devia. Quando seria de esperar que anunciasse que tinha apresentado a demissão ao primeiro-ministro e o primeiro-ministro tivesse aceitado, até porque António Costa o terá colocado entre a saída pelo próprio pé e a demissão pura e simples, o ministro das Infraestruturas desfez-se em desculpas e não se demitiu. Apontado como provável sucessor de Costa, dificilmente Nuno Santos faria pior pelo seu futuro político. Como também era difícil ao primeiro-ministro fazer pior aceitando manter o ministro. É possível que a história esteja mal contada, que as coisas não sejam o que parecem — embora, como dizia o outro, em política o que parece é. E o que parece nem com antiácidos se digere.