10 de março de 2004

A notícia de que a Câmara de Lisboa comprou o Hotel Bragança com o objectivo de lá instalar a futura Casa Eça de Queirós — que está a gerar controvérsia, pois há dúvidas de que seja o mesmo Hotel Bragança de que fala "Os Maias" (ou "A Correspondência de Fradique Mendes", já agora) — fez-me lembrar uma carta de Fradique Mendes a Madame de Jouarre em que este lhe conta as peripécias de uma viagem de comboio entre o Porto e Lisboa. Vale a pena ler na íntegra:

*

Lisboa, Março.

Minha querida madrinha.

Foi ontem, por noite morta, no comboio, ao chegar a Lisboa (vindo do Norte e do Porto), que de repente me acudiu à memória estremunhada o juramento que lhe fiz no sábado de Páscoa em Paris, com as mãos piamente estendidas sobre a sua maravilhosa edição dos «Deveres» de Cícero. Juramento bem estouvado, este, de lhe mandar todas as semanas, pelo correio, Portugal em «descrições, notas, reflexões e panoramas», como se lê no subtítulo da «Viagem à Suíça» do seu amigo o barão de Fernay, comendador de Carlos III e membro da Academia de Toulouse. Pois com tanta fidelidade cumpro eu os meus juramentos (quando feitos sobre a moral de Cícero, e para regalo de quem reina na minha vontade) que, apenas o recordei, abri logo escancaradamente ambos os olhos para recolher «descrições, notas, reflexões e panoramas» desta terra que é minha e que está a la disposition de usted... Chegáramos a uma estação que chamam de Sacavém — e tudo o que os meus olhos arregalados viram do meu país, através dos vidros húmidos do vagão, foi uma densa treva, donde mortiçamente surgiam aqui e além luzinhas remotas e vagas. Eram lanternas de faluas dormindo no rio: — e simbolizavam de um modo bem humilhante essas escassas e desmaiadas parcelas de verdade positiva que ao homem é dado descobrir no universal mistério do Ser. De sorte que tornei a cerrar resignadamente os olhos — até que, à portinhola, um homem de boné de galão, com o casaco encharcado de água, reclamou o meu bilhete, dizendo «Vossa Excelência»! Em Portugal, boa madrinha, todos somos nobres, todos fazemos parte do Estado, e todos nos tratamos por «Excelência».
Era Lisboa e chovia. Vínhamos poucos no comboio, uns trinta talvez — gente simples, de maletas ligeiras e sacos de chita, que bem depressa atravessou a busca paternal e sonolenta da Alfândega, e logo se sumiu para a cidade sob a molhada noite de Março.
No casarão soturno, à espera das bagagens sérias, fiquei eu, o Smith* e uma senhora esgrouviada, de óculos no bico, envolta numa velha capa de peles. Deviam ser duas horas da madrugada. O asfalto sujo do casarão regelava os pés.
Não sei quantos séculos assim esperámos, Smith imóvel, a dama e eu marchando desencontradamente e rapidamente para aquecer ao comprido do balcão de madeira, onde dois guardas de Alfândega, escuros como azeitonas, bocejavam com dignidade. Da porta do fundo, uma carreta, em que oscilava o montão da nossa bagagem, veio por fim rolando com pachorra. A dama de nariz de cegonha reconheceu logo a sua caixa de folha-de-flandres, cuja tampa, caindo para trás, revelou aos meus olhos que observavam (em seu serviço, exigente madrinha!) um penteador sujo, uma boceta de doce, um livro de missa e dois ferros de frisar. O guarda enterrou o braço através destas coisas íntimas, e com um gesto clemente declarou a Alfândega satisfeita. A dama abalou.
Ficámos sós, Smith e eu. Smith já arrebanhara a custo a minha bagagem. Mas faltava inexplicavelmente um saco de couro, e em silêncio, com a guia na mão, um carregador dava uma busca vagarosa através dos fardos, barricas, pacotes, velhos baús, armazenados ao fundo, contra a parede enxovalhada. Vi este digno homem hesitando pensativamente diante de um embrulho de lona, diante de uma arca de pinho. Seria qualquer desses o saco de couro? Depois, descoroçoado, declarou que positivamente nas nossas bagagens não havia nem couro nem saco. Smith protestava, já irritado. Então o capataz arrancou a guia das mãos inábeis do carregador, e recomeçou ele, com a sua inteligência superior de chefe, uma rebusca através das «arrumações», esquadrinhando zelosamente caixotes, vasilhas, pipos, chapeleiras, canastras, latas e garrafões... Por fim sacudiu os ombros, com indizível tédio, e desapareceu para dentro, para a escuridão das plataformas interiores. Passados instantes voltou, coçando a cabeça por baixo do boné, cravando os olhos em roda, pelo chão vazio, à espera que o saco rompesse das entranhas deste globo desconsolador. Nada! Impaciente, encetei eu próprio uma pesquisa sôfrega através do casarão. O guarda da Alfândega, de cigarro colado ao beiço (bondoso homem!), deitava também aqui e além um olhar auxiliador e magistral. Nada, Repentinamente porém uma mulher de lenço vermelho na cabeça, que ali vadiava, naquela madrugada agreste, apontou para a porta da estação:
— Será aquilo, meu senhor?
Era! Era o meu saco, fora, no passeio, sob a chuvinha miúda. Não indaguei como ele se encontrava ali, sozinho, separado da bagagem a que estritamente o prendia o número de ordem estampado na guia em letras grossas — e reclamei uma tipóia. O carregador atirou a jaleca para cima da cabeça, saiu ao largo, e recolheu logo anunciando com melancolia que não havia tipóias.
— Não há! Essa é curiosa! Então como saem daqui os passageiros?
O homem encolheu os ombros. «Às vezes havia, outras vezes não havia, era conforme calhava a sorte...» Fiz reluzir uma placa de cinco tostões, e supliquei àquele benemérito que corresse às vizinhanças da estação, à cata de um veículo qualquer com rodas, coche ou carroça, que me levasse ao conchego de um caldo e de um lar. O homem largou, resmungando. E eu logo, como patriota descontente, censurei (voltado para o capataz e para o homem da Alfândega) a irregularidade daquele serviço. Em todas as estações do mundo, mesmo em Tunis, mesmo na Romélia, havia, à chegada dos comboios, ónibus, carros, carretas, para transportar gente e bagagem... Porque não as havia em Lisboa? Eis aí um abominável serviço que desonrava a Nação!
O aduaneiro esboçou um movimento de desalento, como na plena consciência de que todos os serviços eram abomináveis, e a Pátria toda uma irreparável desordem. Depois para se consolar puxou com delícia o lume ao cigarro. Assim se arrastou um destes quartos de hora que fazem rugas na face humana.
Finalmente, o carregador voltou, sacudindo a chuva, afirmando que não havia uma tipóia em todo o bairro de Santa Apolónia.
— Mas que hei-de eu fazer? Hei-de ficar aqui?
O capataz aconselhou-me que deixasse a bagagem, e na manhã seguinte, com uma carruagem certa (contratada talvez por escritura), a viesse recolher «muito a meu contento». Essa separação porém não convinha ao meu conforto. Pois nesse caso ele não via solução, a não ser que por acaso alguma caleche, tresnoitada e tresmalhada, viesse a cruzar por aquelas paragens.
Então, à maneira de náufragos numa ilha deserta do Pacífico, todos nos apinhámos à porta da estação, esperando através da treva a vela — quero dizer a sege salvadora. Espera amarga, espera estéril! Nenhuma luz de lanterna, nenhum rumor de rodas, cortaram a mudez daqueles ermos.
Farto, inteiramente farto, o capataz declarou que «iam dar três horas, e ele queria fechar a estação!» E eu? Ia eu ficar ali na rua, amarrado, sob a noite agreste, a um montão de bagagens intransportável? Não! nas entranhas do digno capataz decerto havia melhor misericórdia. Comovido, o homem lembrou outra solução. E era que nós, eu e o Smith, ajudados por um carregador — atirássemos a bagagem para as costas, e marchássemos com ela para o hotel. Com efeito este parecia ser o único recurso aos nossos males. Todavia (tanto costas amolecidas por longos e deleitosos anos de civilização repugnam a carregar fardos, e tão tenaz é a esperança naqueles a quem a sorte se tem mostrado amorável) eu e o Smith ainda uma vez saímos ao largo, mudos, sondando a escuridão, com o ouvido inclinado ao lajedo, a escutar ansiosamente se ao longe, muito ao longe, não sentiríamos rolar para nós o calhambeque da Providência. Nada, desoladamente nada, na sombra avara!... A minha querida madrinha, seguindo estes lances, deve ter já lágrimas a bailar nas suas compassivas pestanas. Eu não chorei — mas tinha vergonha, uma imensa e pungente vergonha do Smith! Que pensaria aquele escocês da minha pátria — e de mim, seu amo, parcela dessa pátria desorganizada? Nada mais frágil que a reputação das nações. Uma simples tipóia que falta de noite, e eis, no espírito do estrangeiro, desacreditada toda uma civilização secular!
No entanto o capataz fervia. Eram três horas (mesmo três e um quarto), e ele queria fechar a estação! Que fazer! Abandonámo-nos, suspirando, à decisão do desespero. Agarrei o estojo de viagem e o rolo de mantas: Smith deitou aos seus respeitáveis ombros, virgens de cargas, uma grossa maleta de couro: o carregador gemeu sob a enorme mala de cantoneiras de aço. E (deixando ainda dois volumes para ser recolhidos de dia) começámos, sombrios e em fila, a trilhar à pata a distância que vai de Santa Apolónia ao Hotel Bragança! Poucos passos adiante, como o estojo de viagem me derreava o braço, atirei-o para as costas... E todos três, de cabeça baixa, o dorso esmagado sob dezenas de quilos, com um intenso azedume a estragar-nos o fígado, lá continuámos, devagar, numa fileira soturna, avançando para dentro da capital destes reinos! Eu viera a Lisboa com um fim de repouso e de luxo. Este era o luxo, este o repouso! Ali, sob a chuvinha impertinente, ofegando, suando, tropeçando no lajedo mal junto de uma rua tenebrosa, a trabalhar de carrejão!...
Não sei quantas eternidades gastámos nesta via dolorosa. Sei que de repente (como se a trouxesse, à rédea, o anjo da nossa guarda) uma caleche, uma positiva caleche, rompeu a passo do negrume de uma viela. Três gritos, sôfregos e desesperados, estacaram a parelha. E, à uma, todas as malas rolaram em catadupa sobre o calhambeque, aos pés do cocheiro, que, tomado de assalto e de assombro, ergueu o chicote, praguejando com furor. Mas serenou, compreendendo a sua espantosa omnipotência — e declarou que ao Hotel Bragança (uma distância pouco maior que toda a Avenida dos Campos Elísios) não me podia levar por menos de «três mil réis». Sim, minha madrinha, «dezoito francos»! Dezoito francos em metal, prata ou ouro, por uma corrida, nesta Idade Democrática e Industrial, depois de todo o penoso trabalho das Ciências e das Revoluções para igualizarem e embaratecerem os confortos sociais. Trémulo de cólera, mas submisso como quem cede à exigência de um trabuco, enfiei para a tipóia — depois de me ter despedido com grande afecto do carregador, camarada fiel da nossa trabalhosa noite.
Partimos enfim, num galope desesperado. Dai a momentos estávamos assaltando a porta adormecida do Hotel Bragança, com repiques, clamores, punhadas, cócegas, injúrias, gemidos, todas as violências e todas as seduções. Debalde! Não foi mais resistente ao belo cavaleiro Percival o portão de ouro do Palácio da Ventura! Finalmente o cocheiro atirou-se a ela aos coices. E, decerto por compreender melhor esta linguagem, a porta, lenta e estremunhada, rolou nos seus gonzos! Graças te sejam, meu Deus, Pai inefável! Estamos enfim sob um tecto, no meio dos tapetes e estuques do Progresso, ao cabo de tão bárbara jornada. Restava pagar o batedor. Vim para ele com acerba ironia:
— Então, são três mil réis?
À luz do vestíbulo, que me batia a face, o homem sorria. E que há-de ele responder, o malandro sem par?
— Aquilo era por dizer... Eu não tinha conhecido o sr. D. Fradique... Lá para o sr. D. Fradique é o que quiser.
Humilhação incomparável! Senti logo não sei que torpe enternecimento que me amolecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a disciplina e toda a ordem. Sim, minha cara madrinha... Aquele bandido conhecia o sr. D. Fradique. Tinha um sorriso brejeiro e serviçal. Ambos éramos portugueses. Dei uma libra àquele bandido!
E aqui está, para seu ensino, a verídica maneira por que se entra, no último quartel do século XIX, na grande cidade de Portugal. Todo seu, aquele que longe de si sempre pena,

Fradique

* O velho criado de quarto de Fradique Mendes.