2 de julho de 2009

CHIFRES E BENGALADAS. Estava o país suspenso da conferência de imprensa onde o sr. Vilarinho iria anunciar o futuro do glorioso, e eis que o já ex-ministro Manuel Pinho resolve pôr um par de chifres na cabeça do sr. Bernardino e provocar um abalo na Pátria. O episódio fez-me lembrar um texto notável de Eça de Queirós, que transcrevo sem mais demoras.

Tumultos no Parlamento

Julho 1871.

Escrevemos no primeiro número das
Farpas: «As sessões da Câmara não têm seriedade. Aí reinam o tumulto, a confusão..., etc.»

Uma nova justificação desta verdade apareceu na sessão do dia 29.


O sr. presidente do Conselho falava. Houve um momento em que S. Exª, ou cometeu um erro de gramática, segundo o dizer de alguns jornais, ou arremessou desdenhosamente à circulação a eloquente palavra
bomba, segundo a afirmação de outros. O facto é que a maioria entendeu que a melhor maneira de manifestar ao sr. presidente do Conselho que não tinha confiança na sua política, era apupá-lo! E a Pátria deve agradecer aos senhores deputados que eles não lhe tivessem dado bengaladas!

Então o sr. presidente, a título de esclarecimento, perguntou timidamente se se achava numa praça pública. Pergunta excessivamente ociosa. Numa praça nunca há nem aqueles gritos, nem aqueles tumultos — porque a polícia intervém e faz evacuar a praça. Impunemente, ao abrigo das instituições, sem ingerência policial — uma assuada só se pode dar na Câmara dos Deputados. Em mais nenhuma parte é permitido, pelos regulamentos da polícia, ser-se tão excessivamente trocista. O caso é que a maioria, para provar ao sr. presidente que se considerava ofendida com a designação de
praça, rompeu num alarido tal como não é uso fazer-se na praça de touros — tudo para demonstrar bem claramente que não estava ali um grupo de moços de forcado, mas um corpo de legisladores. A palavra patife fez então pela primeira vez a sua entrada na Câmara e tomou assento. Foi também então que o sr. presidente do Conselho, em compensação, mandou o epíteto malcriados a cumprimentar e abraçar os eleitos do País.

A assuada, o motim, o chasco, o charivari, cresceram tão constitucionalmente que o Sr. Aires de Gouveia, eclesiástico, teve de enterrar na cabeça o seu chapéu alto. A este gesto, cheio de dedicação nacional, a tempestade evacuou a sala. Diz-se que alguns srs. deputados foram cumprimentados à saída pelos melhores frequentadores do sol na praça do Campo de Santana, que se achavam presentes. As galerias permaneceram impassíveis. Tal foi esta memorável sessão, em que a altura das ideias competiu com o vigor da eloquência!


Parece pois definitivo que o Parlamento decidiu adoptar o motim e a assuada como a forma parlamentar dos seus trabalhos. Vistes, amigos, a sessão de 29 de Junho. Quereis assistir à de 29 de Julho? Aí tendes o seu fiel extracto:


O ORADOR
(concluindo): — E foi assim, sr. presidente, que se passaram os factos.

O SR. LUCIANO DE CASTRO
(interrompendo com grandes punhadas na mesa): — O ilustre deputado diz uma refinadíssima peta...

Vozes
: — Apoiado, apoiado!

O ORADOR
(voltando-se e desabotoando o colete): — Petas? oh! descarado! (apoiado, apoiado). Eu, sr. presidente, não posso consentir que esse biltre entre no meu foro interior!

Vozes
: — Fora, fora!

O SR. COELHO DO AMARAL
(espancando com dignidade o Sr. Barros e Cunha): — E assim provo, sr. presidente, que o Sr. Barros e Cunha não tem razão alguma nos princípios que estabeleceu.

O SR. MARIANO DE CARVALHO: — Mas a ditadura foi nefasta! E não há mariola nenhum que me demonstre o contrário...
(acende o cigarro).

O SR. COELHO DO AMARAL
(continuando o espancamento): — Não me interrompam o discurso! Não me interrompam!

O SR. PRESIDENTE
(aos Srs. Mariano e Santos Silva): — Os senhores não têm direito a interromper sovas que o regimento garante (berreiro).

O SR. PRESIDENTE DO CONSELHO: — A Câmara está-se sepultando na mais profunda abjecção!


(O sr. presidente do Conselho sucumbe, sob uma chuva de bengaladas).


O SR. JOSÉ DIAS
(batendo com a bengala sobre a mesa, a um continuo): — Dois cafés! Um cabaz!

Vozes (atravessando o corpo legislativo)
: — Salta meia de Colares!

O SR. PINHEIRO CHAGAS
(deitado, com ar melancólico):

«Oh virgem pálida e triste

Branca visão doutros Céus!»


O SR. AIRES DE GOUVEIA: — O que diz ele?


Vozes
: — Ele cisma! Ele cisma!

A oposição atira cebolas ao Sr. Pinheiro Chagas. Alguns senhores deputados grunhem obscenidades, que o ruído impediu que chegassem à mesa dos taquígrafos.


O ORADOR: — A Câmara não quer escutar-me? Pois bem, eu passo a outros argumentos...
(Distribui bengaladas).

Tumulto. O sr. presidente atira a campainha à cara da maioria, e o tinteiro aos queixes da oposição. Alguns senhores deputados miam de gato. O Sr. Santos e Silva, no auge da sua indignação, dá cambalhotas. O Sr. Luís de Campos espalha uma prodigiosa quantidade de pontapés.


O SR. PRESIDENTE: — Para amanhã continua esta interessante discussão.


A Câmara sai correndo, gritando, rebolando pelas escadas abaixo.


Os contínuos levantam as garrafas de
Colares.

A política chegou a tal miséria, que nem a polidez instintiva coíbe os homens.


Eça de Queirós, As Farpas