28 de dezembro de 2019
DA DECÊNCIA. O meu problema com Donald Trump não é ele ser republicano ou democrático, conservador ou liberal (no sentido americano). O meu problema é a decência, que ele não tem, nunca teve e nunca terá. Depois é a admiração que ele tem por ditadores como Putin, Erdogan ou Kim Jong-un, que inveja por não ter o poder que eles têm — e eu abomino ditadores. Terceiro, é um mentiroso como nunca se viu (mais de 15 mil mentiras desde que entrou na Casa Branca, segundo o Washington Post). Quarto, porque é racista, provavelmente supremacista branco (tem um supremacista branco no seu gabinete), misógino até à náusea. Tem, por último, um problema mental (a hilariante «teoria do vento» é só o último exemplo), que ninguém se atreve a diagnosticar — porque a saúde do Presidente é hoje mais do foro político que do foro clínico, e não há quem esteja disposto a arruinar a reputação. Mas alguma coisa parece estar a mudar. Multiplicam-se, à hora a que escrevo, sinais de oposição a Trump dentro do eleitorado tradicionalmente republicano. Primeiro foram os evangélicos (as várias correntes evangélicas começaram a guerrear-se por causa de Trump), agora é um grupo republicano que colocou anúncios no «coração» trumpista, a Fox News, exigindo ao Senado que não transforme numa farsa o julgamento a que Trump vai ser sujeito, e está a usar outdoors para questionar a idoneidade do Presidente. Não se pode, portanto, dar por adquirido que o julgamento sejam favas contadas para o Presidente, como ainda há pouco se previa. O que já se vai insinuando pode muito bem ser o princípio do fim da paz podre que reina à volta de Trump, a que vêm juntar-se as teorias mirabolantes do caquético Giuliani, advogado de Trump, que de tão mal-amanhadas já nem os crentes convencem.
20 de dezembro de 2019
TRUMP E A RÚSSIA. Vladimir Putin garantiu a Donald Trump, na cimeira de Helsínquia, que não interferiu nas Presidenciais americanas de 2016, e Trump fez questão de acreditar no ditador russo e desacreditar todas as agências governamentais americanas (19) que afirmam o contrário. Agora, o mesmo Vladimir Putin veio dizer publicamente, como se o assunto lhe dissesse respeito, que não havia motivo para a impugnação de Trump, acusado de condicionar uma ajuda militar à Ucrânia (para se defender dos russos) à abertura de uma investigação destinada a liquidar o potencial adversário às eleições de 2020 (Joe Biden). Confirma-se, portanto, a conjugação dos astros: todos os caminhos do Presidente americano vão dar à Rússia.
17 de dezembro de 2019
E VÃO SETE. Não restava ao Partido Democrático alternativa que não fosse impugnar o Presidente Trump. Independentemente das perdas ou ganhos que venha a ter, difíceis de avaliar neste momento, deixar correr seria um precedente grave, e mesmo que o Senado não o destitua, não torna a impugnação inconsequente ou menos importante. Há razões de sobra para impugnar e, depois, destituir o Presidente, e se estivéssemos a falar de um crime cometido por uma pessoa, digamos, «normal», Trump estaria, há muito, na cadeia. O inquilino da Casa Branca é um sujeito perigoso, e até os duros de ouvido, leia-se os que só ouvem o que lhes convém, acabarão por admitir, nem que seja para eles próprios. Rick Gates, ex-vice-presidente de campanha de Trump, foi hoje mesmo condenado a mês e meio de cadeia por irregularidades cometidas nessa mesma campanha. É o sétimo do círculo próximo de Trump a conhecer a cadeia. Repito: o sétimo. Uns já lá estão, outros já lá estiveram, outros para lá irão. Um poço de virtudes, como Trump se reclama e os duros de ouvido aplaudem, não se rodeia de gente desta.
11 de dezembro de 2019
OS FILHOS DA OUTRA. Retomando o que já é uma tradição, o Nobel da Literatura deste ano ficou envolto em controvérsia. Porque o premiado apoiou, na Guerra dos Balcãs, Slobodan Milosevic, acusado de genocídio. Jennifer Egan, vencedora de um Pulitzer e actual presidente do PEN America, repudiou a escolha de um escritor que «persistentemente colocou em dúvida crimes de guerra minuciosamente documentados». O escritor britânico Hari Kunzru diz que Peter Handke sofre de «uma cegueira ética alarmante». Joyce Carol Oates acusou a academia sueca de ter mais simpatia pelos verdugos que pelas vítimas, e o filósofo esloveno Slavoj Zizek escreveu que foi eleito «um apologista de crimes de guerra». O Times de Londres escreveu, em editorial, que a escolha do austríaco foi «um insulto às vítimas do genocídio». Aleksandar Hemon, escritor de origem bósnia, diz que Handke é «o Bob Dylan dos negacionistas do genocídio». Também houve elogios, mas poucos. O crítico literário Denis Schek afirmou que o prémio foi uma bofetada na correcção política, e houve quem dissesse, sobre o conflito ex-Jugoslávia, que o nobelizado esteve do lado certo da história. Sem surpresa, houve protestos na cerimónia de entrega do prémio, depois da inevitável petição online para revogar a decisão. Como é óbvio, discordo dos pressupostos dos que discordam. Não que me seja indiferente que o escritor tenha apoiado gente da pior espécie, mas a obra literária que ele produziu, que desconheço, não deve ser enaltecida — ou denegrida — porque o autor é um canalha ou um santo. Se o prémio se destina à literatura, premie-se a literatura — e a literatura, como é sabido, está cheia de grandes livros escritos por grandes canalhas, que não se recomendam como seres humanos mas se recomendam como escritores. Mas se afastarmos as obras dos canalhas, sobra quem? Alguns, com certeza, mas desconfio que não muitos. Miguel Esteves Cardoso disse numa entrevista à revista Ler: «Se tirarmos os filhos da puta da literatura e da pintura ficamos com nada. Se se tirarem os bêbados fica-se com zero. Se deixarmos só os livros feitos por pessoas que se portavam bem, tratavam bem a mulher, eram bons amigos e pagavam as contas a horas, ficamos só com merda.» É isto.
7 de dezembro de 2019
A FEZADA DO CLIMA. Apesar de não se falar doutra coisa, as alterações climáticas continuam a ser uma questão de fé: uns crêem, outros não. De ciência fala-se pouco, e quando se fala, duvida-se muito. Com razão. Porque os próprios cientistas parecem mais interessados em passar as suas opiniões que em demonstrar as evidências científicas — ou ditar as suas opiniões sem as fundamentar cientificamente. Por isso estamos onde estamos: de um lado, os que garantem estarmos diante uma catástrofe iminente; do outro, os que acham que tudo não passa de um embuste. Paradoxalmente, Greta Thunberg, o principal rosto do activismo pelo clima, também não ajuda. A ignorância própria da idade e o oportunismo à volta dela confundem mais que esclarecem, e no final ganham os incréus.
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