24 de junho de 2016

JORNALISMO NO CHARCO. O Correio da Manhã (CM) resolveu ameaçar quem, nas redes sociais, espalhou «boatos, calúnias e mentiras» contra o jornal a propósito de Cristiano Ronaldo, suponho que na sequência do microfone que o futebolista arremessou para um charco. Desconheço a gravidade do que foi dito para o jornal ameaçar com os tribunais, mas se chegou onde chegou, presumo que foi grave. Acontece que o CM poderá ter todos os motivos para processar quem o terá difamado, mas não tem autoridade moral para se queixar de boatos, calúnias e mentiras. Afinal, o CM vive disso, por regra impunemente. Não aplaudo o comportamento de Ronaldo — que tem, é bom não esquecer, um longo historial de problemas com o CM, que a generalidade dos media ignorou. Mas que o episódio do microfone foi um atentado à liberdade de imprensa, como diz o CM e o presidente da Comissão da Carteira de Jornalista (que estranhamente não se tem pronunciado em casos bem mais graves), vou ali e já venho. É preciso ver que o repórter que se aproximou de Ronaldo violou os regulamentos para que isso fosse possível, pelo que em matéria de atentados foi o repórter quem começou. E, já agora, violou os regulamentos porquê? Porque teria uma pergunta cujos meios justificassem os fins? Como pudemos ouvir, a pergunta foi sobre nada, pelo que a resposta só poderia ser coisa nenhuma. Um microfone afocinhado na lama no fundo de um charco acabou, assim, por se tornar uma caricatura, a meu ver bastante benévola, do «jornalismo» que se pratica no Correio da Manhã.

16 de junho de 2016

CONFUNDIR O CU COM AS CALÇAS. O massacre de Orlando levanta dois problemas óbvios: a venda de armas, e o terrorismo islâmico. Do primeiro, fala-se abertamente. Do segundo, ignora-se até o impossível de ignorar. Porque o primeiro é um assunto mais ou menos popular (e mais ou menos consensual), e o segundo coloca o dedo em dois pontos hipersensíveis: a existência do islão radical, sempre pronto a matar; e a questão da homossexualidade, que não tem lugar nessa visão do islão — e por isso deve ser exterminada. Mas parece que a matança da Florida levantou um terceiro problema, menos óbvio e raramente discutido: a existência de homossexuais muçulmanos, cuja denúncia ou «saída do armário» pagam com a vida. É um bom sinal. Com seria um bom sinal discutir a sério o papel da mulher no islão (os crimes de honra, a homofobia, o machismo generalizado), outro assunto politicamente incorrecto de que os campeões da modernidade fogem como o diabo da cruz. A questão da venda de armas nos EUA deve ser encarada a sério? Com certeza que deve, embora esteja por demonstrar a relação causa-efeito, isto é, que a proibição de vender armas contribuiria para a redução dos crimes de sangue — e é bom lembrar que não há lei que impeça que se cometam massacres como o de Orlando. Mas o islamismo radical tem, igualmente, de ser encarado de frente, até porque neste caso está amplamente demonstrada a relação causa-efeito. Dir-me-ão que a proliferação de armas na sociedade civil mata mais gente que o islão radical, e contra factos não há nada a dizer. Só que discutir as armas em vez do islão radical a propósito da matança de Orlando, é confundir o acessório com o essencial. E o essencial neste caso é que o islão radical continua a matar perante o faz-de-conta de uma larga camada de bem-pensantes, que recusam trocar as reconfortantes certezas em que vivem pela mais cruel evidência.

3 de junho de 2016

PARECE QUE VALE TUDO. Lembro-me de um jornalista ter confrontado Donald Trump com um facto aparentemente embaraçoso envolvendo um dos seus muitos negócios e de o multimilionário ter respondido: «It's business.» Por momentos, o jornalista embatucou, mas logo passou adiante — como achasse que a pergunta estava respondida, e de modo irrefutável. Ora, a resposta de Trump não me convenceu, e a satisfação (ou resignação, não percebi bem) do jornalista até me surpreendeu. Vale tudo nos negócios? Devo dizer que não me choca por aí além o vale tudo nos negócios quando se trata de alguém que não é candidato a nada. Mas como não questionar quem é candidato a um cargo político que é suspeito de nas suas actividades profissionais ter desempenhos eticamente reprováveis? Imagino que Donald Trump está cheio destes casos, e até há suspeitas de casos piores. Mas, a avaliar pelo encolher de ombros do jornalista e pelo silêncio sepulcral que o episódio causou, isto não conta para nada. Os negócios tornaram-se uma espécie de religião que ninguém questiona, muito menos descrê. Muitíssimo apropriada uma passagem de Claudio Magris em A História Não Acabou: «O empresário é personagem de todo o respeito e de central importância no âmbito da colectividade que lhe é própria; torna-se uma figura ridícula (...) se for proposto como modelo universal humano.» É onde estamos.