22 de outubro de 2021

O ALBERGUE DO PECADO. Trezentas mil vítimas de pedofilia praticada pela Igreja Católica, no caso a Igreja Católica francesa, que vieram juntar-se a muitos outros milhares em todo o mundo, significam que a Igreja Católica tem um problema mais grave do que se supunha. A gente vê os números que vão surgindo um pouco de todo o lado, nomeadamente de países tradicionalmente católicos, e não pode deixar de se interrogar se o que o que ainda há pouco se dizia excepção é, afinal, a regra. Salvo melhor opinião, a Igreja Católica tornou-se um albergue de frustrados sexuais, que lá encontraram acolhimento, depois encobrimento, por fim impunidade. Sim, a Igreja Católica é uma agremiação de pecadores, como gostam de lembrar quando ficam na mira da crítica. Convenhamos, no entanto, que não há água benta que chegue para tanto pecado.

19 de outubro de 2021

SOL E SOMBRA. Sigo com atenção cada novo argumento em defesa das touradas, mas continuam a não me convencer. Tirando os aficionados e os directa ou indirectamente interessados, contra os quais nada tenho, as touradas são, para mim, um espectáculo grotesco, em que o animal não tem as mesmas armas para lutar que o adversário — e, por isso, perde sempre. Também o argumento de que se trata de uma actividade que faz parte da cultura portuguesa, uma tradição com centenas ou milhares de anos, não me convence. A irmos por aqui, estaríamos hoje a ver lutas de gladiadores como no império romano (não é uma tradição portuguesa, mas serve para o caso), a praticar outras tradições entretanto banidas pelo mesmo motivo que hoje, como dantes, um fidalgo não mata o seu criado e fica impune. Não vejo, honestamente, um argumento atendível em defesa das touradas, muito menos das touradas onde o touro, torturado e exausto, é morto na arena. E não me venham com o argumento de que a proibição das touradas abre a porta à proibição da matança do porco e da galinha para a cabidela, como vi já escrito por aí. Dizer que uma coisa leva a outras é uma falácia, um «argumento» de quem os não tem.

6 de outubro de 2021

MEMÓRIAS DE UM ÁTOMO (7). Tendo escrito, num obscuro jornal, acerca de não sei que problema que o apoquentava, e não tendo a reclamação surtido qualquer efeito (o mais provável é que ninguém leu), o meu amigo voltou à carga na edição seguinte com novo texto que titulou: «Terei malhado em ferro frio?» Teodorico Raposo, n’A Relíquia, também prometeu comer os fígados a um certo hércules caso o apanhasse em Lisboa, fora de portas, num sítio que ele lá sabia. Não sei por que relaciono os dois episódios, mas aqui fica a passagem: “Vagarosamente, calado, com método, o hércules pousou a vela no chão, ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas... Eu rugi: «Bruto!» Ele ciciou: «Silêncio!» E outra vez, tendo-me ali acercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou tremendamente quadris, nádegas, canelas, a minha carne toda, bem cuidada e preciosa! Depois, tranquilamente, apanhou o seu castiçal. Então eu, lívido, em ceroulas, disse-lhe com imensa dignidade: — Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui ao pé do túmulo do Senhor, e eu não querer dar escândalos por causa da minha tia... Mas se estivéssemos em Lisboa, fora de portas, num sítio que eu cá sei, comia-lhe os fígados! Nem você sabe de que se livrou. Vá com esta, comia-lhe os fígados! (...) E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções de arnica.”