28 de abril de 2015

DESCONFORTOS CONFORTÁVEIS. Se a Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CReSAP) não conseguiu evitar que a Segurança Social tenha sido invadida por «boys» do PSD e do CDS, então serve para quê? Se o objectivo da CReSAP é indicar ao Governo três nomes (os vencedores do concurso que ela própria promove) para preencher determinado cargo na administração pública e o Governo faz ouvidos de mercador (quando devia, segundo o seu presidente, escolher «aleatoriamente» um deles), por que não se demitem os seus dirigentes? O actual presidente, João Bilhim, que diz ter tomado conhecimento deste assunto pela comunicação social (um clássico), veio candidamente manifestar «muito desconforto» e «tristeza», porque sempre achou que o Governo «iria escolher em termos técnicos», e que na hora da verdade «não iam ligar à ligação política ou partidária». Apesar da surpresa (presumo) e da enorme decepção (volto a presumir), João Bilhim mantém que a entidade a que preside, curiosamente criada pelo actual Governo, acabou com os «jobs for the boys». «A CReSAP assegura com transparência, isenção, rigor e independência as funções de recrutamento e seleção de candidatos para cargos de direção superior da Administração Pública e avalia o mérito dos candidatos a gestores públicos», lê-se, na internet, logo na página de entrada. Como não assegura coisa nenhuma, volto a perguntar: para que serve a CReSAP? Serve, até ver, para que o presidente aufira um ordenado mensal ilíquido de 5.436,61 euros + 2.174,61 de despesas de representação + telemóvel com um plafond de 80 euros, e para que três vogais aufiram, no mesmo período, ordenados mensais de 4.892,96 euros + 1.957,18 de despesas de representação + telemóvel com um plafond de 80 euros. Despesas a somar a muitíssimas outras, como é bom de ver, e que acabarão na factura a pagar de quem estão a pensar.
A GRANDE MÚSICA (10).



Aconselho o registo inteiro do concerto de Jan Garbarek e a sua banda em Leverkusen. Os impacientes podem avançar para o minuto 37, onde está um dos melhores solos de contrabaixo (de Eberhard Weber) que vi até hoje. Se continuarem impacientes, vão, depois, aqui, onde podem ver um solo imperdível de Manu Katché.

24 de abril de 2015

LETRAS E TRETAS DA PARVÓNIA. Este texto de António Araújo (publicado quase há um ano mas actualíssimo) ilustra bem por que motivo a deputada Isabel Moreira votou o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90, para simplificar), e por que se abespinhou quando alguém, numa comissão parlamentar, a confrontou com a circunstância de defender o AO90 e escrever como se ele não existisse. Tratar a língua portuguesa como a deputada a tratou em Apátrida, ao que parece a sua primeira incursão literária, é, de facto, lamentável. Os exemplos de António Araújo são abundantes, e seria fastidioso estar aqui a repeti-los quando estão ao alcance de um clique. Já a crítica de Maria da Conceição Caleiro, que no Público considerou Apátrida «um belo e doloroso livro», e generosamente lhe atribui quatro estrelas (a escala vai de 1 a 5), fui ler para crer. «Apátrida é a vários níveis um livro surpreendente e dos mais interessantes que se publicaram em Portugal nos últimos tempos: belo, doloroso, denso, contagiante», diz Conceição Caleiro no parágrafo final. E porquê? Porque o livro está «superpovoado de marcas de subjectividade, de emoção grafada (interrupções, parêntesis, exortações); porque «dá a descobrir uma intimidade que o leitor deslumbrado e ofegante pressente ser extrema, incandescente, despudorada, recôndita, magmática, aflita, aflitiva»; porque é um «resíduo vivíssimo de um confronto surdo, de uma violência»; porque «toda esta fala é mais do lado da intensidade e da insistência do mesmo sempre outro, ou de cada vez já outro, pois é impossível a sobreposição absoluta»; porque a índole de Isabel Moreira «é por natureza apátrida, reinventada por uma causa, uma procura, um sentido, subsumida por uma ética». Resumindo e concluindo, por razões que não se percebem. A única coisa que se percebe é que Conceição Caleiro quis dizer bem, mas quanto a razões, não quis — ou não soube — explicar. Se não surpreende (a crítica literária está cheia destes malabarismos), exercícios destes acabam, invariavelmente (e talvez involuntariamente), por contrariar o que pretendem. Pois é muito bem feito.
É FAVOR TRADUZIREM. Reconheço que alguns jornalistas da área económica se esforçam por explicar aos não iniciados matérias do foro estritamente económico e financeiro sem recorrer ao economês, mas mesmo esses não conseguem evitar o vocabulário dos meios, e que só os meios entendem. O que é papel comercial? Activos? Rácios de capital? Protecção contra credores? Liquidez? Execução de títulos? Almofadas de capital? Provisões de imparidade? Provisões líquidas? Vendas a descoberto? Spreads? Haircut? Exposição da mercearia do sr. Joaquim ao talho do sr. Manuel? Na maioria dos casos, nem os melhores dicionários ajudam. Faziam bem os jornalistas da área económica evitar este palavreado, e não sendo possível escapar-lhe em alguns casos, então abram parêntesis e expliquem, em português que se entenda, o que pretendem dizer. Todos ganhariam com isso, a começar por eles.

21 de abril de 2015

DO SONHO À REALIDADE. Não sou portista, mas gostaria que o Porto tivesse ganho — ou, no mínimo, alcançado um resultado que lhe permitisse ultrapassar a eliminatória, e quem me conhece sabe que não estou a ser hipócrita. Dito isto, é preciso que se diga que o resultado na Alemanha (derrota por 6-1) não aconteceu por acaso, nem, sequer, me pareceu exagerado. Afinal, ao contrário do primeiro jogo, que o Porto venceu com todo o mérito (por 3-1), a derrota em Munique ilustra na perfeição a diferença entre o futebol de topo que se pratica em Portugal e na Alemanha. Isto apesar do Bayern nunca ter estado, como é sabido, na sua máxima força (ausência de cinco titulares nos dois jogos), apesar de o Porto também ter razões de queixa (ausência de dois titulares no jogo de hoje). As coisas são o que são, e os alemães são claramente melhores do que nós. Não só no futebol, mas isso é outra conversa.
TÍTULOS QUE ME DÃO VOLTA AO ESTÔMAGO. A todos os que migram: não vos podemos deixar morrer (Paulo Rangel, Público de 21/04/2015)
COISAS QUE ME FAZEM SORRIR. Sempre que alguém entra no seu apartamento e lhe pergunta se já leu todos os livros que lá tem (cerca de 30 mil), Umberto Eco recorda: «Há três respostas. A primeira é: "Li muitos mais". A segunda é: "Não li nenhum, senão porque os guardaria?" E a terceira é: "Não, mas tenho de os ler na próxima semana".» Entrevista ao Expresso de 17/4/2015.

17 de abril de 2015

PRESIDENCIAIS AMERICANAS, PRIMEIRO ROUND. Hillary Clinton anunciou a candidatura à presidência dos EUA, e logo ressuscitou a velha pergunta: haverá, ou não, vantagens para os EUA (ou qualquer outro país) em ter uma mulher presidente? Há muito que a questão, para mim, está respondida: como voto no candidato que considero melhor, seja de esquerda ou de direita, não vejo por que motivo haveria de mudar o critério quando o candidato é mulher. Sei que muitos votarão, nas presidenciais americanas, numa mulher por ser mulher e contra ela pelo mesmo motivo, razões que hoje em dia me são incompreensíveis. As mulheres que votam numa mulher só por ela ser mulher não se distinguem dos homens que votam contra uma mulher só por ela ser mulher. Vendo bem, considerando a longa cultura machista (que não se muda de um dia para o outro ou por decreto), talvez se distingam... mas pelas piores razões.

10 de abril de 2015

INSTALAÇÕES E CONFUSÕES. Provavelmente os transeuntes tinham escassa sensibilidade (e nulo conhecimento) acerca das coisas da arte. Mas confundir uma grua que caiu em cima de um museu, ainda por cima de arte moderna, com uma instalação artística, parece-me razoável. Afinal, um acidente numa obra distingue-se basicamente de uma instalação artística por ter sido involuntário, não planeado, ao contrário da instalação artística. Esteticamente, os dois casos parecem-me muito semelhantes, e no caso que hoje se anuncia, se calhar o acidente foi, «artisticamente» falando, mais interessante que uma instalação.

7 de abril de 2015

POST PATROCINADO PELA JOHNSON & JOHNSON. Estava o meu estômago posto em sossego após digerir arrobas de encómios a propósito da morte de Herberto Helder, eis que outra se anuncia, a de Manoel de Oliveira, pelos vistos um cineasta amado pelos portugueses de Faro a Melgaço, de Díli a Newark. Quantos portugueses terão visto os filmes de Manoel de Oliveira? Quantos, vá lá, terão visto um terço dos filmes que ele fez? Eu cá só vi dois (Amor de Perdição e outro de que já não me lembro). Mas, atenção, não me gabo disso. Limito-me a constatar uma evidência, no caso a ignorância da sua obra, de que também não me orgulho. A avaliar pelo vi, não deve haver um só português que não tenha visto, pelo menos, uma dúzia de filmes de Oliveira, especialmente os derradeiros (os menos convencionais, digamos assim, que o tornaram uma lenda ainda em vida). Como é evidente, a mentira é maior que a mais extensa longa-metragem de Oliveira, e deve-se aos meios ditos culturais, que não satisfeitos em se derreterem em loas mal ele se foi, inventaram o embuste. Conhecia mal Oliveira, mas desconfio que o cineasta não apreciaria malabarismos destes. E se há coisas a que jamais me habituarei é à hipocrisia, que em doses exageradas (foi o caso) me põe o estômago em alvoroço. Se em circunstâncias normais já dependo dos antiácidos, imaginem com fitas destas.