29 de fevereiro de 2012

THOMAS MANN. Após vários adiamentos, li A Montanha Mágica, e escassas páginas bastaram para ver que estava diante um livro notável. Sabia, à partida, que A Montanha é um grande livro, mas devo dizer que a circunstância não condicionou a minha opinião. Nem antes de o ler, nem depois de o ler. As referências elogiosas a um livro ou autor despertam-me, quando muito, curiosidade e incentivam-me a lê-lo (e já não é pouco), mas o juízo final sou eu quem o faz. Sou dos que prefere errar pela sua própria cabeça a acertar pela cabeça dos outros, com todas as virtudes e defeitos daí resultantes. E a minha sentença não me oferece dúvidas: se A Montanha Mágica não é uma obra-prima, não sei o que é uma obra-prima. Li com alguma dificuldade Morte em Veneza, salvo erro numa edição da Europa-América, mas lembro-me que na altura atribuí o escasso entusiasmo à má tradução. Ainda assim lembro-me de algumas passagens, apesar de o ter lido há mais de uma década. Agora vou a meio d’Os Buddenbrook, e apesar do prazer que me está a dar parece-me aquém da Montanha. Espero que Doutor Fausto, que me espreita ali da estante, faça jus à Montanha. Sei que é pedir demasiado, mas quem bebe um vinho fino de cinco estrelas tenderá a pôr defeitos num de quatro.

28 de fevereiro de 2012

FONTES ANÓNIMAS (2). A Agência Lusa diz não ter conseguido «provas conclusivas» de que a fonte anónima que lhe terá garantido que Domingos Paciência terá mantido encontros com dirigentes do FC Porto lhe terá fornecido informações falsas ou agido de má-fé. «Após aturada averiguação feita ao caso», diz a Lusa em nota aos clientes, a direcção de informação decidiu anular a controversa notícia e não divulgar, «para já», a identidade da fonte. Como foi evidente desde o início (disse-o aqui), a «aturada investigação» só podia ter acabado numa mão cheia de nada. Mais valia, portanto, ficarem calados.
COISAS EVIDENTES. Desculpem a presunção, mas há anos que ando a dizer o que agora o director da biblioteca de Harvard confessou à revista Ñ. «Me han invitado a tantas conferencias sobre la muerte del libro que estoy convencido de que el libro está bien vivo. La gente simplifica demasiado las cosas. Pocos entienden que cada año se publican muchos más libros que el año anterior. La impresión de libros se expande a un ritmo vertiginoso, y, de hecho, este año habrá un millón de nuevos títulos impresos. También es cierto que los libros digitales están adquiriendo cada vez más importancia, como nunca antes. Se piensa que el mercado de libros electrónicos ocupa el 15% de las ventas. Es mucho. A los libros electrónicos les está yendo muy bien en EE.UU. Es una tendencia mundial. Los libros electrónicos, por supuesto, se están volviendo cada vez más importantes. Pero, al mismo tiempo, eso sucede con los libros impresos. Entonces, ¿cómo podemos interpretar esta situación? (...) Me parece que la gente hoy comprende la llegada del mundo digital como algo que transforma totalmente nuestra experiencia. Entonces imaginan que los medios de comunicación digitales y analógicos ocupan extremos opuestos del espectro tecnológico. Eso, en mi opinión, es un malentendido de base. Para mí, de hecho, se complementan entre sí.»

24 de fevereiro de 2012

A BOA MOEDA E A MÁ MOEDA (2). O Presidente Cavaco, que sempre desprezou a generalidade dos políticos e tentou colocar-se acima deles, julga-se no direito de não responder aos jornalistas quando estes lhe fazem perguntas incómodas. Foi o que sucedeu hoje, durante uma visita ao Norte do país, ao fazer ouvidos de mercador quando um repórter lhe perguntou a razão que o levou a cancelar a visita à escola António Arroio, onde uma manifestação pouco simpática o esperava. Cavaco ouviu a pergunta com a displicência que costuma reservar para os jornalistas, fez de conta que não era com ele, e tratou de mudar de assunto. E quando foi questionado sobre o que disse acerca das suas pensões de reforma, que justamente indignou os portugueses, arrumou o assunto com um lacónico «não devo contribuir (...) para aumentar polémicas ou desinformações». Resumindo, o Presidente considera que não tem contas a prestar aos portugueses, e quando os seus actos são questionáveis, não se podendo furtar a comentá-los, invariavelmente acusa os jornalistas, esse malandros que passam a vida a deturpar o que ele diz, a transformar fait-divers em assuntos de Estado e a praticar outras maldades. Não que os jornalistas sejam uns santinhos, e até me parece que há pecadores em demasia. Mas os jornalistas são, para Cavaco, culpados de todos os seus erros, estratégia que sempre lhe rendeu dividendos mas que, francamente, me parece esgotada. Os portugueses finalmente descobriram a natureza do homem por trás da máscara, e não gostaram do que viram. Mesmo os portugueses que sempre votaram nele, como se vai vendo por aí.

21 de fevereiro de 2012

A BOA MOEDA E A MÁ MOEDA (1). Não sei se a atitude de Passos Coelho quando se dirigiu aos manifestantes que o vaiaram em Gouveia foi um acto de modéstia da sua parte ou um gesto devidamente ponderado, mas tiro-lhe o chapéu de qualquer maneira. Não porque o primeiro-ministro tenha feito mais que a sua obrigação, mas porque gestos assim, genuínos ou encenados, são cada vez mais raros, e na minha opinião cada vez mais necessários. Teve uma eficácia acrescida: disparou uma farpa tão oportuna como certeira sobre o Presidente da República, que dias antes vergonhosamente se furtou a uma visita a uma escola onde era aguardado por uma manifestação de descontentamento que nem sequer lhe era directamente destinada. Portugal precisa de um Presidente forte e umas botas? Não há dúvida que precisa. Mas a verdade é que os episódios pouco edificantes protagonizados por Cavaco nos últimos anos em nada contribuíram para que os portugueses o respeitem. Como em tempos se disse de outros governantes, resta, portanto, ajudá-lo a terminar o mandato com dignidade. Pelo rumo que as coisas estão a levar, não vai ser fácil.
A LAMÚRIA DO COSTUME. Como leitor, é sempre com tristeza que encaro o encerramento de uma livraria, qualquer livraria. Provavelmente a que mais tristeza me causou até hoje foi o encerramento da Strand da Fulton Street, que visitei pela primeira e última vez quando já se empacotavam os livros e já tinha dia marcado para encerrar. Leio agora que a Livraria Portugal fechou (ou está em vias disso) e sinto a mesmo tristeza, apesar de lá ter entrado apenas duas ou três vezes nos meus verdes anos. Mas se o encerramento de uma livraria me causa tristeza, também devo dizer que geralmente não me comovem as lamúrias que apontam as grandes cadeias livreiras como as causadoras dessas desgraças. Conheço pequenas e médias livrarias em Nova Iorque que estão de muitíssimo boa saúde financeira apesar das megalojas por todo o lado, geralmente da Barnes & Noble. Até alguns alfarrabistas, apesar de nos últimos anos muitos se terem mudado para os subúrbios por não aguentarem o preço das rendas. Sempre que vou à Strand (agora reduzida à loja da Broadway), à Book Culture, à Shakespeare, à Saint Marks, à McNally, à Rizzoli, à bookbook ou à Biography encontro-as cheias de gente. E porquê? Porque são livrarias de grande qualidade. Porque apostaram na diferença. Porque investiram em áreas específicas sem descurar o que de melhor se vai publicando. Porque geralmente fizeram as três coisas. Nada disto se viu nas livrarias que foram desaparecendo. Deviam, portanto, queixar-se de si próprias, e só de si próprias. Atribuir a desgraça própria ao sucesso alheio soa mal, e neste caso não é sério.

17 de fevereiro de 2012

FONTES ANÓNIMAS (1). Depois de ser alvo de um processo — ou ameaça de um processo — por divulgar uma notícia aparentemente falsa, a Agência Lusa resolveu emitir um comunicado onde se penitencia e explica por que tal sucedeu. Segundo ela, uma fonte anónima de «toda a confiança» terá dito ao autor da notícia que Domingos Paciência, então treinador do Sporting, terá mantido encontros com dirigentes do FC Porto, facto que não será verdadeiro. Disse mais: a elaboração da notícia «não respeitou as normas essenciais do Código Deontológico do Jornalista nem as regras do Livro de Estilo da Agência» previstas para estes casos, e caso venha a apurar que a fonte da notícia agiu de má-fé identificá-la-á. Ora, cometer um erro e assumi-lo, é o mínimo que se exige, mas neste caso parece-me pouco. Desde quando se dá uma notícia, ainda por cima uma notícia que iria causar brado, com base em fontes anónimas de que não se está absolutamente seguro? Depois, como saber — e demonstrar — que a tal fonte agiu de má-fé? Perdoar um erro que não tem perdão, ainda vá. Mas fazerem promessas impossíveis de concretizar, só mesmo para enganar o freguês.

15 de fevereiro de 2012

COISAS QUE NÃO SE PERCEBEM. Haverá, no sistema penal português, inúmeros procedimentos difíceis de entender, mas este parece-me flagrante. Um suspeito de ter cometido determinado crime pode ser obrigado a aguardar julgamento em prisão preventiva caso um juiz considere perigoso mantê-lo em liberdade. Já um condenado por um tribunal a uma pena de prisão efectiva pode aguardar em liberdade a decisão de um tribunal superior caso o condenado decida para aí recorrer. Estão a ver a lógica da coisa? Eu confesso que não.

14 de fevereiro de 2012

AGUENTA QUE É SERVIÇO. Pergunto-lhe como vão as coisas por ter de falar sem nada que me ocorra, e o sujeito desata a crescer, a crescer, a encher os pulmões — e a seguir despeja-me em cima um arrazoado que logo desisti de ouvir para lhe observar os danos colaterais que um olho matreiro no mais leve movimento das catraias ao balcão não conseguia esconder. Citou Nietzsche mal e a despropósito, embrulhou-se numa teoria do bem-estar que dizia praticar mas claramente não praticava, meteu os pés pelas mãos vezes sem conta, e concluiu o «raciocínio» a barafustar contra «os filhos da puta que nos governam». Terminou o monólogo a segredar-me o que fazia àquela pequena se ela deixasse, e a pequena a perceber que o sujeito falava dela e não devia ser coisa boa. Às vezes, quando o acaso nos junta, descreve-me as proezas sexuais que diz ter praticado ainda ontem mas obviamente não praticou, nem sequer o «papai e mamãe», como diriam as brasileiras que tanto lhe incendeiam a libido. Tudo dito com uma convicção tal que chega a parecer-me que acredita nas suas próprias mentiras, mesmo depois de ajuntar um ou outro detalhe à história que só lha enfraquece. Mas ninguém é perfeito, como ele costuma dizer, embora a modéstia não seja o seu forte.

9 de fevereiro de 2012

ESTRELAS LITERÁRIAS. Considerando que apenas uma ínfima parte dos livros que diariamente se publicam resistirão ao tempo, esse grande juiz, como entender a quantidade de estrelas que os críticos literários atribuem às novidades que vão saindo? E os autores portugueses contemporâneos, que pela quantidade de estrelas que lhe são concedidas a cada novo livro só podem ser obras-primas? Será que alguém se lembrará desses livros daqui a dois ou três anos? Com certeza que há livros e escritores injustamente esquecidos (estou a lembrar-me de Vergílio Ferreira, mas há mais), mas quer-me parecer que o esquecimento não durará para sempre. Mais tarde ou mais cedo regressarão ao convívio com os leitores, que a passagem do tempo faz esquecer mas não apaga inteiramente. Já as «obras-primas» diariamente apregoadas como tal estão, de um modo geral, condenadas ao esquecimento eterno. Bem sei que os críticos literários têm contas a pagar no final do mês, mas fazia-lhes bem meditar nisto.
BOAS NOTÍCIAS. Jornal de Angola rejeitou Acordo Ortográfico.

7 de fevereiro de 2012

CÁ VAMOS NA FORMA DO COSTUME. O sistema de Justiça absolveu Valentim Loureiro no caso da quinta do Ambrósio. Mesmo com provas evidentes, os tribunais não conseguem, mais uma vez, apanhar os poderosos.
NO CENTENÁRIO DE DICKENS. Suspeito que já aqui falei do assunto (não me apetece consultar os arquivos), mas não me canso de recomendar esta passagem de Dickens em que ele descreve a sua chegada a Veneza:

I was awakened after some time (as I thought) by the stopping of the coach. It was now quite night, and we were at the waterside. There lay here, a black boat, with a little house or cabin in it of the same mournful colour. When I had taken my seat in this, the boat was paddled, by two men, towards a great light, lying in the distance on the sea.

Ever and again, there was a dismal sigh of wind. It ruffled the water, and rocked the boat, and sent the dark clouds flying before the stars. I could not but think how strange it was, to be floating away at that hour: leaving the land behind, and going on, towards this light upon the sea. It soon began to burn brighter; and from being one light became a cluster of tapers, twinkling and shining out of the water, as the boat approached towards them by a dreamy kind of track, marked out upon the sea by posts and piles.

We had floated on, five miles or so, over the dark water, when I heard it rippling in my dream, against some obstruction near at hand. Looking out attentively, I saw, through the gloom, a something black and massive - like a shore, but lying close and flat upon the water, like a raft - which we were gliding past. The chief of the two rowers said it was a burial-place.

Full of the interest and wonder which a cemetery lying out there, in the lonely sea, inspired, I turned to gaze upon it as it should recede in our path, when it was quickly shut out from my view. Before I knew by what, or how, I found that we were gliding up a street - a phantom street; the houses rising on both sides, from the water, and the black boat gliding on beneath their windows. Lights were shining from some of these casements, plumbing the depth of the black stream with their reflected rays, but all was profoundly silent.

So we advanced into this ghostly city, continuing to hold our course through narrow streets and lanes, all filled and flowing with water. Some of the corners where our way branched off, were so acute and narrow, that it seemed impossible for the long slender boat to turn them; but the rowers, with a low melodious cry of warning, sent it skimming on without a pause. Sometimes, the rowers of another black boat like our own, echoed the cry, and slackening their speed (as I thought we did ours) would come flitting past us like a dark shadow. Other boats, of the same sombre hue, were lying moored, I thought, to painted pillars, near to dark mysterious doors that opened straight upon the water. Some of these were empty; in some, the rowers lay asleep; towards one, I saw some figures coming down a gloomy archway from the interior of a palace: gaily dressed, and attended by torch-bearers. It was but a glimpse I had of them; for a bridge, so low and close upon the boat that it seemed ready to fall down and crush us: one of the many bridges that perplexed the Dream: blotted them out, instantly. On we went, floating towards the heart of this strange place - with water all about us where never water was elsewhere - clusters of houses, churches, heaps of stately buildings growing out of it - and, everywhere, the same extraordinary silence. Presently, we shot across a broad and open stream; and passing, as I thought, before a spacious paved quay, where the bright lamps with which it was illuminated showed long rows of arches and pillars, of ponderous construction and great strength, but as light to the eye as garlands of hoarfrost or gossamer - and where, for the first time, I saw people walking - arrived at a flight of steps leading from the water to a large mansion, where, having passed through corridors and galleries innumerable, I lay down to rest; listening to the black boats stealing up and down below the window on the rippling water, till I fell asleep.

O livro, Pictures from Italy, pode ser descarregado aqui.

6 de fevereiro de 2012

APLAUSOS. Vasco Graça Moura mandou, e bem, remover a aplicação informática que no Centro Cultural de Belém convertia os textos em português para a grafia imposta pelo novo Acordo Ortográfico. Graça Moura foi dos primeiros a contestar o Acordo, quem mais deu a cara e argumentos contra a sua entrada em vigor, e apesar de ter sido aprovado pela Assembleia da República jamais desistiu de o contestar. Mais: defende que o Acordo não pode entrar em vigor sem a ratificação de Angola e Moçambique, e que é inconstitucional. Não se perceberia, portanto, que aceitasse presidir a uma instituição onde a língua portuguesa não seja tratada segundo os princípios que defende e pelos quais se tem batido. Parece que o estatuto do CCB, fundação pública de direito privado, dispensará a instituição de adoptar o Acordo até 2014, pelo que não terá havido desobediência governamental, como chegou a ser dito. Assim sendo, é uma decisão que se aplaude. Graça Moura foi coerente com o que defende, corajoso num país onde a coragem não abunda, e espevitou o debate à volta de um tema sobre o qual existem cada vez mais dúvidas. Três coelhos de uma só cajadada não é obra para qualquer um.

3 de fevereiro de 2012

AUTOCENSURA. Ele há coincidências, toda a gente sabe que há. Mas quem acredita que a decisão de acabar com um programa da RDP e afastar o colaborador que lá denunciou a fantochada que a RTP transmitiu a partir de Luanda estava tomada antes das críticas irem para o ar? Quem acredita que o afastamento de Pedro Rosa Mendes e a suspensão do programa em que colaborava foi um «acto de gestão normal»? Desconheço se o responsável pela decisão foi pressionado pelo poder, directa ou subtilmente, mas não errarei muito se disser que foi um caso de autocensura. Autocensura, como sabemos, que é a pior das censuras.

1 de fevereiro de 2012

ELOGIO DO CONFLITO. Presidente e Governo garantiram, à vez, que não há problema entre eles. E por que se deram a esse trabalho? Porque há, de facto, um problema entre eles, como até o mais distraído já notou. Mas será um conflito entre o Presidente e o Governo um mal em si mesmo? Depende, claro, da natureza do conflito, mas de um modo geral parece-me positivo. E quando o conflito é entre membros da mesma família política, como o caso presente, ainda me parece melhor. Claro que não é fácil perceber quando o conflito resulta de diferentes pontos de vista ou de razões, digamos, de pequena política. Mas em política o conflito é saudável, se calhar mesmo quando motivado pela pequena política. A unanimidade é burra, dizia Nelson Rodrigues já não me lembro a que propósito. A unanimidade em política ainda é mais burra, acrescentaria eu.
ORA NEM MAIS. Um equívoco chamado «cultura»
BEM OBSERVADO. O cinema não foi inventado por juristas portugueses e, por isso, começou por ser mudo.