«Uma dessas tertúlias [de estudantes], de reconhecida elevação de espírito, tinha uma estranha particularidade: os seus elementos não queriam nada com a água e o sabão. Mantinham uma guerra aberta com a limpeza, alegando que só desprezando o corpo se conseguia uma completa sublimação do espírito. Enfim...
[O poeta] João de Deus, sempre ávido de convívios interessantes, fez várias tentativas para entrar nessa curiosa tertúlia. Em vão... Os estatutos, muito apertados... exigiam ao candidato uma prova insofismável de falta de limpeza.
Inspiração era com João de Deus. Um dia, julgou encontrar a chave da impenetrável porta. No melhor papel de carta que pôde arranjar, redigiu a pretensão, esmerando-se na caligrafia e no estilo. No fim, limpou o rabo ao papel, dobrou-o como mandam as regras e meteu-o num envelope da melhor qualidade. Tudo muito distinto...
Esperou, naturalmente, ser recebido em apoteose. Engano. A resposta chegou na volta do correio, seca e cortante:
"Indeferido por ter limpo o cu."»
Crónicas do Meu Vagar, de Camilo de Araújo Correia