O almoço, no Pombinha, decorreu alegre, à parte algum discurso cacete: o do nosso bom Raposo, «urso» açoriano. O [Manuel Rodrigues] Lapa, mais velho, era para nós um conviva de honra: se ele falou, francamente não recordo o que disse. O vinho às ondas, saímos dali consideravelmente etilizados: ele, porém, alerta, sorridente e aprumado. Um de nós, o simpático... (não, não vou revelar nomes!) voou, juro que voou em linha recta, a dar um mergulho na taça da fonte em frente do Palácio. Mas o vinho congrega mal, e cedo dispersámos.
Do grupo que ficou, alguém sugeriu — a «prova» tinha sido animadora — uma saltada às adegas de Colares. Foi com certeza o Passarinho, grande copofónico que usava patilhas e bengalão, falava grosso, e dava tiros inesperados em casas suspeitas do Bairro Alto. (Este Passarinho é outro pseudónimo, se me entendem.) Tomámos uma tipóia e descemos a Colares: o Lapa, o Mayer, o Passarinho, eu, e talvez mais algum que esqueci. Não sei o que se passou na visita às adegas: tenho o vinho sossegado, e não saí da vitória. Só me lembro da dormência da tarde e da vastidão da luz difusa no céu. Os meus colegas voltaram sobrecarregados, e as pilecas meteram a caminho de volta a Sintra, bufando de esforço.
À passagem de uma aldeola avistámos um galito, e o Passarinho, com o seu brio de académico, mas contra os nossos protestos, resolveu raptá-lo. Atirou-se da vitória abaixo e, coisa pasmosa para o seu estado, correu atrás dele e conseguiu deitar-lhe a unha. Enrodilhou-o na capa e meteu-o debaixo do assento a cacarejar de desespero. Foi repreendido!
Não tardou que, no descampado da encosta, ouvíssemos brados alarmantes e em seguida um tiro ou dois. Os aldeãos tinham dado pelo furto e vinham sobre nós em vasta linha de ataque envolvente. O Passarinho, de repente aflito, pôs o galucho em liberdade: vimo-lo abalar, tonto e esgrouvinhado, em direcção à aldeia. Ao som dos tiros, entretanto, o cocheiro fizera parar as bestas: «A subida é muito íngreme», disse, «e elas não aguentam!» Lívido sob os incontáveis pontos pretos que lhe poluíam as grosseiras feições, o Passarinho rogava: «Ande lá pra diante, homem de Deus!» Mas ele: «Esta gente aqui conhece-me: se cá me tornam a apanhar tiram-me a pele!» E não se mexeu.
Vimo-nos logo cercados de uma algazarra pouco tranquilizadora: gritos, varapaus no ar, uma ou duas caçadeiras, e só Deus sabe que mais. Saloios e estudantes, não estão a ver? Queriam o galo, reclamavam uma indemnização. «Mas eu já o soltei!», gemia o valentão, a tremer, sem a eloquência nem a tesura habituais. Nem a pistola! Sentia-se mais pequenino do que o próprio nome, via-se bem. O Lapa assistia à cena, fleumático, de perna cruzada, olhando o outro com ironia e desdém. Eu ainda tentei acalmar os ânimos, segundo o meu péssimo costume. Os saloios é que não estavam pelos ajustes, e teimavam ameaçadores: «Venha o dinheirinho! O galito ficou aleijado!» Alguém falou em tiros... Então o Passarinho apeou-se, pôs o joelho em terra e cruzou as mãos em prece: «Pelo amor de Deus, não me tirem a vida, que eu tenho mulher e filhos!» Assim mesmo, de capa e batina. Com aquela cara de Remexido! Até parecia do tempo dele.
Aqui o Lapa indignou-se. Sem destrocar a perna, atirou-lhe: «Ó seu cobardola, pague lá o galo aos homens, e toca a andar!»
Foi a sentença final. O ferrabrás entregou-lhes os dez'tões do tempo (era dinheiro!), e eles foram-se embora: com o galo, a espórtula e a vergonha do estudante.
Rodrigues Miguéis, O Espelho Poliédrico