Não sei que sé permitido ou não (o acesso à edição online do Público não é de borla, como é sabido), mas a crónica de hoje de Vasco Pulido Valente parece-me demasiado importante para só ser lida pelos pagantes. Assim sendo, aqui vai:
Cristo e Soares
Anteontem, no Altis, Soares justificou a sua candidatura com a ausência de qualquer outra candidatura (da esquerda, presumo), "capaz de suscitar e mobilizar o entusiasmo dos portugueses". Alegre não concorda, mas Soares tem uma certa razão. Havia, de facto, um vazio e naturalmente ele ocupou esse vazio. O que Soares não disse, e ninguém pensou, é que ele próprio criou esse vazio. Foi fundador do PS, secretário-geral, primeiro-ministro, Presidente da República e, principalmente, durante 37 anos, foi a influência dominante na esquerda e, em larga medida, no país. No fim, não deixou nada. Com uma extraordinária persistência, conseguiu cercar e afastar toda a gente que no partido lhe parecia diminuir o seu poder. À sua volta só ficaram "lealistas" (desculpem o anglicismo) e, para Soares, "lealdade" significa uma completa abdicação pessoal a favor dele e do seu destino. Quer criaturas que ele fez, que ele manobra, que ele usa. Não quer companheiros de viagem, com vida e vontade próprias. Quem não percebeu isto não o percebeu.
De qualquer maneira, havia um vazio e Soares não hesitou em o ocupar. Resta saber se ele chega. Na "multidão" do Altis não estava ninguém, ou quase ninguém, que não tivesse estado já no MASP I ou, pelo menos, no MASP II. Não apareceu uma cara nova, inesperada, surpreendente. Apareceu a velha tropa veterana e jurássica, para uma última campanha, sonhando com uma repetição triunfal do passado. Quem a conhece hoje? Quem se importa com ela? Que pesa ela num Portugal de memória curta, ou mesmo sem memória, tão longe do Portugal de "85 como da Lua? Até o discurso de Soares, com a sua velha retórica e os seus velhos truísmos deu uma inconfortável impressão de estranheza, de um engano, de um erro no tempo. Apesar da euforia, pairou pela reunião do Altis uma grande tristeza.
O mundo mudou e Soares, jura ele, mudou. E este Soares inteiramente mudado oferece o quê? A liberdade, primeiro, e a seguir, o optimismo, uma economia ao serviço do povo, "um futuro mais tranquilo e mais justo", um "perfil humano", "flexibilidade política", a banal condenação da guerra no Iraque e, não adivinham?, a tal "magistratura de influência". Em suma, a "língua-de-pau" de uma democracia exausta. A crise da sociedade, da economia, das finanças, do regime não existe. Jesus Cristo, aliás, nunca se preocupou com isso e não é Soares, no assento etéreo onde subiu, que se vai agora preocupar.