7 de novembro de 2005
O filho único, com menos de vinte anos, bonito, garboso e bom calção, de chapéu à mazantina, corria agora o Alentejo na sua égua baia, amando filhas de lavradores supostamente virgens (elas!), consolando viúvas e mal-casadas, e fazendo negócios de cereais, até que um dia, à força de trafulhices, foi malhar com os ossos na cadeia. Lembrou-se então de mim, havia anos que não nos víamos, telegrafou-me, e eu corri a acudir-lhe. Trouxe-o para Lisboa, incomunicável, guardado à vista pelo agente da Judiciária que só à custa de sacrifícios (meus) nos deixou trocar algumas frases. O caso era bicudo. Entre outras, ele tinha empenhado e vendido meia dúzia de vezes uma debulhadora a vapor, que nunca pagara. Consegui afiançá-lo. O advogado da firma, trouxa e meu amigo, aceitou a devolução da máquina e passou-me um termo de desistência da queixa e de toda e qualquer reclamação no foro cível. Os advogados dos restantes credores, sem entender, engalfinharam-se. Não havendo outros bens, de que lhes servia metê-lo na cadeia? Não viram vintém. Não me pergunte para onde ia o dinheiro: ele pagava a uns credores com o que ia subtraindo aos outros. Honrado nas contas! Arrumado o caso, e ele livre de vez, fi-lo encontrado com o pai no meu escritório. À despedida, já na rua, o velho, rubicundo de antigos sangues nórdicos, colarinho à-rais-te-parta sujo, roupa cor de pinhão enxovalhada, e charuto mastigado nos dentes, homem sério, recusou apertar a mão que o filho — «adeus, pai!» — lhe estendeu. O rapaz girou nos calcanhares, com o sorriso, e andou para nunca mais. Irreconciliáveis. Ao vê-lo ir, Rossio abaixo, o velho mudou a posição do charuto apagado nos beiços, esguichou para longe o cuspo negro, e comentou: «Este meu filho, e de uma magana, sempre é muito esperto!» Foi o responso ou Ite Missa est. E a mim, que suara para o livrar, nem obrigado me disse, nem um chavo ofereceu pagar-me, que eu, é claro, não teria aceitado: gente das nossas relações, quase família! Rodrigues Miguéis, O Fraque