Ainda hoje quando passo na Praça do Chile estou sempre à espera de o ver à porta da Antiga Adega dos Perus a meditar os horizontes. Era alto e triste, altíssimo. Tão comprido e tão ossudo que já tinha o esqueleto hipotecado a uma fábrica de botões, disse uma vez o patrão da Adega em tom de subentendido.
Heliodoro, de seu nome oficial, nascia a prumo duns sapatos cheios de nós e terminava em arco, num pescoço de ganso de olhos compungidos que lhe davam uma certa solenidade magoada. Tinha modos respeitosos, mesmo no levar o copo à boca, e falava grave e baixinho como se estivesse num funeral. Na verdade, Heliodoro andava aos mortos, vivia disso. Mas sonhava com mariscos — duas coisas que não ligam lá muito bem.
Começava o dia com o jornal aberto na secção da Necrologia, à procura de falecidos de altas cruzes: juízes, beneméritos, almirantes de longo curso, comendadores, gente assim. Tomava notas da biografia daquele que lhe tocasse mais na alma e, com dois jeitos na gravata preta, apresentava-se em casa da família enlutada como um apagado e saudoso protegido do defunto. Com pesar e desamparo, recordava um ou outro acontecimento apanhado na biografia do jornal e se naquela casa os ares estavam razoavelmente enevoados pela dor, era mais que certo que saía de lá com uma recordação do ente querido: sapatos, peças de roupa, uma bengala de castão de prata, o que calhasse.
15 de agosto de 2008
LEITURAS. Eu sei que devem andar para aí afogados em leituras, mas não resisto a transcrever esta passagem de Cardoso Pires, mais precisamente uma passagem de Lidoro Silva, dito o Ganso, publicado na colectânea de crónicas A Cavalo no Diabo: