4 de agosto de 2009

LI E GOSTEI (1)

Em Janeiro do ano em que se iria matar, Hemingway, um homem velho e frágil, com o cabelo todo branco, pálido, com os membros enfraquecidos mas aparentemente um pouco melhor das suas últimas crises, foi autorizado pelos médicos a regressar a Ketchum. O seu amigo Gary Cooper acabava de dizer que um homem feliz é aquele que durante o dia, devido ao seu trabalho, e à noite, devido ao seu cansaço, não tem tempo para pensar nas suas coisas. No entanto, Hemingway tinha esse tempo. Foi-lhe pedido que contribuísse com uma frase para um livro que ia ser entregue ao recém-investido presidente dos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy. Trabalhou todo o dia e não conseguiu a frase. «Já não sai», balbuciou ao seu amigo Georges Saviers. E chorou. Nunca mais voltou a escrever. Quando chegou a Primavera, dizem que nem a viu e que nem se apercebeu de que tinha chegado. Vestido sempre de preto, cabisbaixo, vivia num permanente estado de desespero. Alguns heróis dos seus livros, com a sua estóica resistência à adversidade, com a sua extraordinária elegância no sofrimento, iam passar à história e ficar, pelo menos durante algum tempo, na memória da humanidade. Mas ele estava desesperado e a sua estóica resistência soçobrava. E não podia fazer muito. Quando se está mergulhado na adversidade, já é tarde para se ser cauto. Mudou da armaria para um armário uma velha espingarda de caça e dois cartuchos. A mulher descobriu e avisou o médico e o médico pediu a Hemingway que devolvesse a espingarda à armaria. Tiveram de voltar a interná-lo, mas antes de entrar no carro que o conduziria ao avião que o ia levar ao hospital precipitou-se para a armaria e pôs a arma carregada na garganta. «Shanghaied», disse. Foi apenas uma antecipação do que acabaria por fazer em Julho.

Enrique Vila-Matas, Paris nunca se acaba