31 de março de 2004

A Ana Albergaria diz que não tem nada contra o Saramago comunista. Para ela, Saramago escreve bem e pronto. Ora, também eu não tenho nada contra o Saramago comunista, ou «comunista libertário», como ele agora se diz. O meu problema com Saramago é a prosa, e só a prosa. Como, aliás, já o disse quando aqui transcrevi os dois primeiros períodos do "Evangelho", e insisto (na ideia e nos períodos):

«O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de luz e sinuosas labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir, pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo.»

Oh! Ana Albergaria, isto é lá prosa que se apresente? E repare que não é uma citação ao acaso, ou uma parte menos conseguida do livro procurada à lupa com o intuito de arrear no homem. São os dois primeiros períodos do livro, veja só. Está bem, eu gosto muito de si e não me quero zangar. Além de que não tenho tempo para polémicas, embora me pele por uma boa polémica. Mas, caramba, rebentava se não desabafasse.