O sr. presidente do Conselho falava. Houve um momento em que S. Exª, ou cometeu um erro de gramática, segundo o dizer de alguns jornais, ou arremessou desdenhosamente à circulação a eloquente palavra bomba, segundo a afirmação de outros. O facto é que a maioria entendeu que a melhor maneira de manifestar ao sr. presidente do Conselho que não tinha confiança na sua política, era apupá-lo! E a Pátria deve agradecer aos senhores deputados que eles não lhe tivessem dado bengaladas!
Então o sr. presidente, a título de esclarecimento, perguntou timidamente se se achava numa praça pública. Pergunta excessivamente ociosa. Numa praça nunca há nem aqueles gritos, nem aqueles tumultos — porque a polícia intervém e faz evacuar a praça. Impunemente, ao abrigo das instituições, sem ingerência policial — uma assuada só se pode dar na Câmara dos Deputados. Em mais nenhuma parte é permitido, pelos regulamentos da polícia, ser-se tão excessivamente trocista. O caso é que a maioria, para provar ao sr. presidente que se considerava ofendida com a designação de praça, rompeu num alarido tal como não é uso fazer-se na praça de touros — tudo para demonstrar bem claramente que não estava ali um grupo de moços de forcado, mas um corpo de legisladores. A palavra patife fez então pela primeira vez a sua entrada na Câmara e tomou assento. Foi também então que o sr. presidente do Conselho, em compensação, mandou o epíteto malcriados a cumprimentar e abraçar os eleitos do País.
A assuada, o motim, o chasco, o charivari, cresceram tão constitucionalmente que o Sr. Aires de Gouveia, eclesiástico, teve de enterrar na cabeça o seu chapéu alto. A este gesto, cheio de dedicação nacional, a tempestade evacuou a sala. Diz-se que alguns srs. deputados foram cumprimentados à saída pelos melhores frequentadores do sol na praça do Campo de Santana, que se achavam presentes. As galerias permaneceram impassíveis. Tal foi esta memorável sessão, em que a altura das ideias competiu com o vigor da eloquência!
Parece pois definitivo que o Parlamento decidiu adoptar o motim e a assuada como a forma parlamentar dos seus trabalhos. Vistes, amigos, a sessão de 29 de Junho.
Quereis assistir à de 29 de Julho? Aí tendes o seu fiel extracto:
O ORADOR (concluindo): — E foi assim, sr. presidente, que se passaram os factos.
O SR. LUCIANO DE CASTRO (interrompendo com grandes punhadas na mesa): — O ilustre deputado diz uma refinadíssima peta...
Vozes: — Apoiado, apoiado!
O ORADOR (voltando-se e desabotoando o colete): — Petas? oh! descarado! (apoiado, apoiado). Eu, sr. presidente, não posso consentir que esse biltre entre no meu foro interior!
Vozes: — Fora, fora!
O SR. COELHO DO AMARAL (espancando com dignidade o Sr. Barros e Cunha): — E assim provo, sr. presidente, que o Sr. Barros e Cunha não tem razão alguma nos princípios que estabeleceu.
O SR. MARIANO DE CARVALHO: — Mas a ditadura foi nefasta! E não há mariola nenhum que me demonstre o contrário... (acende o cigarro).
O SR. COELHO DO AMARAL (continuando o espancamento): — Não me interrompam o discurso! Não me interrompam!
O SR. PRESIDENTE (aos Srs. Mariano e Santos Silva): — Os senhores não têm direito a interromper sovas que o regimento garante (berreiro).
O SR. PRESIDENTE DO CONSELHO: — A Câmara está-se sepultando na mais profunda abjecção!
(O sr. presidente do Conselho sucumbe, sob uma chuva de bengaladas).
O SR. JOSÉ DIAS (batendo com a bengala sobre a mesa, a um contínuo): — Dois cafés! Um cabaz!
Vozes (atravessando o corpo legislativo). — Salta meia de Colares!
O SR. PINHEIRO CHAGAS (deitado, com ar melancólico):
«Oh virgem pálida e triste
Branca visão doutros Céus!»
O SR. AIRES DE GOUVEIA: — O que diz ele?
Vozes: — Ele cisma! Ele cisma!
A oposição atira cebolas ao Sr. Pinheiro Chagas. Alguns senhores deputados grunhem obscenidades, que o ruído impediu que chegassem à mesa dos taquígrafos.
O ORADOR: — A Câmara não quer escutar-me? Pois bem, eu passo a outros argumentos... (Distribui bengaladas).
Tumulto. O sr. presidente atira a campainha à cara da maioria, e o tinteiro aos queixos da oposição. Alguns senhores deputados miam de gato. O Sr. Santos e Silva, no auge da sua indignação, dá cambalhotas. O Sr. Luís de Campos espalha uma prodigiosa quantidade de pontapés.
O SR. PRESIDENTE: — Para amanhã continua esta interessante discussão.
A Câmara sai correndo, gritando, rebolando pelas escadas abaixo.
Os contínuos levantam as garrafas de Colares.
15 de dezembro de 2004
Um discurso de duas horas e meia do presidente do Governo Regional da Madeira, que a oposição considerou próprio «para adormecer rinocerontes», despoletou uma peixeirada no Parlamento madeirense. Além dos rinocerontes, a coisa meteu acusações de enriquecimento suspeito a não sei quem identificado como «vendedor de sifões de retretes», que se defendeu chamando «gatuno» a quem o acusou. A coisa trouxe-me à memória uma passagem de As Farpas, que não resisto a transcrever: