A Ana Albergaria diz que não tem nada contra o Saramago comunista. Para ela, Saramago escreve bem e pronto. Ora, também eu não tenho nada contra o Saramago comunista, ou «comunista libertário», como ele agora se diz. O meu problema com Saramago é a prosa, e só a prosa. Como, aliás, já o disse quando aqui transcrevi os dois primeiros períodos do "Evangelho", e insisto (na ideia e nos períodos):
«O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de luz e sinuosas labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir, pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo.»
Oh! Ana Albergaria, isto é lá prosa que se apresente? E repare que não é uma citação ao acaso, ou uma parte menos conseguida do livro procurada à lupa com o intuito de arrear no homem. São os dois primeiros períodos do livro, veja só. Está bem, eu gosto muito de si e não me quero zangar. Além de que não tenho tempo para polémicas, embora me pele por uma boa polémica. Mas, caramba, rebentava se não desabafasse.
31 de março de 2004
Ahmed Yassin foi canonizado. Duvidam? Então vão ver o "post" do Rui Tavares ("As desvantagens da rotina").
30 de março de 2004
Definitivamente que não me interessa se os escritores são progressistas ou reaccionários, comunistas ou fascistas, anti-semitas ou nazistas. Para mim, um escritor é bom ou mau. Ou, então, faz parte dos que não conheço, seguramente a maioria. Se o escritor é vermelho ou azul, heterossexual ou homossexual, nunca me interessou. Nunca deixei de ler um escritor por ser anti-semita, comunista ou fascista, e não vejo razão para mudar. Aliás, cada vez me interessa menos se o escritor é de direita ou de esquerda, e acho perfeitamente idiota dizer-se que os escritores de esquerda são melhores que os de direita — ou o contrário. Qualquer palerma que leu meia dúzia de livros sabe que há bons escritores na esquerda e na direita. O resto é conversa, geralmente idiota, como a crónica de Baptista-Bastos sobre Nelson Rodrigues. Tal como o Bruno, mil vezes prefiro «um velhaco, um pederasta, um ladrão de galinhas que escreva como Nelson Rodrigues a dez mil almas bem intencionadas que pensem como Vital Moreira».
O governo francês resolveu não apoiar a intervenção militar no Iraque. Resultado: os eleitores resolveram puni-lo nas eleições de domingo. Um argumento estúpido? Sem dúvida. Tão estúpido como o argumento de que os espanhóis decidiram punir o governo de Aznar por ter apoiado a intervenção militar no Iraque. Afinal, a base do raciocínio é a mesma: suposições e coisa nenhuma.
26 de março de 2004
O Alberto Gonçalves escreveu um "post" magnífico sobre Saramago ("Ensaio sobre a toleima"). Está lá tudo o que eu gostaria de ter dito mas não fui capaz. E, já agora, façam o favor de ler esta prosa.
Fazia tenções de comentar as últimas crónicas de Miguel Sousa Tavares e Villaverde Cabral, mas pus-me a ler "A República dos Corvos" e passou-me a vontade. A "A República dos Corvos" é um daqueles livros que se começam a ler e não apetece parar. Como, aliás, todo o Cardoso Pires. De maneira que espero que Miguel Sousa Tavares e Villaverde Cabral passem bem, que eu muito obrigado.
25 de março de 2004
24 de março de 2004
José Saramago insiste que o "Ensaio sobre a Lucidez" vai causar polémica. Se assim não for, «é porque as pessoas estão tão adormecidas que questionar a democracia não as afecta». Ora, eu confesso que só de ler esta tirada fiquei logo com sono. E posso garantir-vos que é já um avanço, pois a última vez que li Saramago irritei-me. E só eu sei o que me custa adormecer quando me irrito. Mas fiquei logo desperto quando ele disse que o seu novo romance critica os jornalistas, porque os jornalistas são demasiado submissos (ao governo) e mudam de cor como quem muda de camisa. E acrescentou em defesa da tese: «Acredito que muitos jornalistas se adaptam com demasiada facilidade à cor ambiente». Estará ele a referir-se aos jornalistas do "DN" dos tempos em que foi director? Não me parece. Afinal, o que consta é precisamente o contrário: alguns jornalistas adaptaram-se mal à cor ambiente — e foram postos na rua.
23 de março de 2004
Ahmed Yassin ordenou dezenas de atentados terroristas de que resultaram a morte de centenas de civis inocentes. Ordenou ataques, fuzilamentos e apedrejamentos contra os seus. Não hesitou em usar crianças na «guerra santa», em usar mulheres para cometer actos suicidas e defendia abertamente a destruição do estado de Israel. Perante isto, e muito mais, Vital Moreira acha que Ahmed Yassin não passava de «um idoso tetraplégico numa cadeira de rodas» que foi apanhado pelo exército israelita «à saída de um serviço religioso». Razão tem a esquerda inteligente (também há, também há) em demarcar-se de gente assim.
José Luís Zapatero terá dito um chorrilho de lugares-comuns em entrevista ao "El País" (que não li) que deixou o João Morgado Fernandes vaidoso por já os ter dito antes. E que disse Zapatero de tão excitante assim? Segundo o próprio João, isto: «A melhor resposta [ao terrorismo] é a comunidade mundial de serviços secretos. Tem de haver muito mais cooperação entre os serviços de informações. E devemos reduzir ao máximo os focos que produzem fanatismo e violência. A guerra é o último recurso. É um factor que pode provocar mais ódio, mais fanatismo, mais risco de violência.»
22 de março de 2004
Sem dúvida que o assassinato de Ahmed Yassin, conhecido activista dos direitos humanos que terá salvo de vida de dezenas de pessoas (ou centenas, não sei bem), sobretudo judeus, pode dar origem a uma escalada de violência sem precedentes, e isso só pode ser lamentável. Daí que foram importantes (e comoventes) as reacções de repúdio de todo o mundo, nomeadamente de Ana Gomes, que se apressou a dizer: «é urgente a União Europeia actuar, não deixando falhar o processo de paz no Médio Oriente». E actuar como? E de que processo de paz está ela a falar? Infelizmente não explicou. Mas explicou — e não precisava — que a culpa do conflito do Médio Oriente é da administração Bush, como será culpa de Bush caso o PS não a despache para o Parlamento Europeu e como será culpa de Bush caso chova em Agosto. Como se o papel que lhe cabe se resumisse a criticar o que os outros fazem ou não fazem.
19 de março de 2004
Só mais uma coisa acerca do terramoto político de Espanha: o povo que deu uma estrondosa vitória ao PSOE é o mesmo que se preparava, três dias antes, para votar no PP. Ora, tendo o povo sido considerado inteligente e heróico por rejeitar o PP e votar no PSOE, quer isso dizer que antes era estúpido e cobarde?
18 de março de 2004
As comunidades muçulmanas espalhadas pelo mundo dizem estar preocupadas com a escalada terrorista do fundamentalismo islâmico — e eu acredito que seja verdade. Acontece que eu ainda não os vi condenar de forma veemente e inequívoca os diversos atentados cometidos até agora, quando seria desejável que fossem os primeiros a fazê-lo. Até para que não restassem dúvidas de que não se revêem em tais atitudes, demonstrando aos candidatos a fundamentalistas que há outro caminho.
17 de março de 2004
Corre por aí uma discussão acerca da segurança e da liberdade que chega a ser hilariante. Sim, ser revistado à entrada do avião, tudo bem. Mas limitar a liberdade, isso nunca. Ora, não será a revista à entrada do avião uma limitação à liberdade? Não será a revista à entrada do avião uma forma de transformar um pacato cidadão em suspeito?
Depois de ter dito que «outros países [Inglaterra e Itália] virão antes de Portugal» no caso de haver retaliações pelo apoio à Guerra do Iraque — dando mostras de que a sua visão não vai além do seu próprio umbigo —, o dr. Mário Soares diz, agora, que é preciso negociar com os terroristas. Ora, eu confesso que já não me espantava com nada do que o dr. Soares diz. Mas esta deixou-me de boca aberta.
Parece não restarem dúvidas de que o governo espanhol mentiu e manipulou quem pôde com o objectivo de fazer passar a «verdade» que mais lhe convinha. Pelos dados que se vão conhecendo, não há dúvida de que o comportamento do sr. Aznar face à autoria dos atentados de Madrid chega a ser chocante. Se o PP perdeu as eleições de domingo por causa disso, foi muito bem feito.
16 de março de 2004
«(...) o mais elementar bom senso levaria a pensar que o Governo, ao focar todas as responsabilidades na ETA, estava a cometer um erro de palmatória. Como é que tantos estrategas, tantos conselheiros, tantos homens políticos experimentados não viram o que se metia pelos olhos dentro»?, pergunta o prof. Prado Coelho. Como se vê, após ter descoberto que os atentados de Madrid representam «uma guerra declarada do fundamentalismo islâmico contra os valores ocidentais» (provavelmente a mais importante descoberta depois da pólvora), o ilustre cronista demonstrou ser um génio, pois não me lembro de quem fizesse previsão tão certeira sobre os resultados das eleições espanholas após o desfecho ser conhecido.
15 de março de 2004
Parece que foi necessário um atentado de grande envergadura em Espanha — aparentemente cometido pela Al-Qaeda — para pôr a Europa a discutir o terrorismo. Ora, perante tão tardia descoberta, o mínimo que se pode dizer é que os dirigentes europeus são um bando de irresponsáveis. Como irresponsável (e ridícula) é a conduta do dr. Mário Soares, quanto diz que, «se houver retaliações [pelo apoio à Guerra do Iraque], outros países virão antes de Portugal, como Inglaterra e a Itália». Até por ter acabado de dizer — e com razão — que os líderes europeus «têm vistas curtas».
12 de março de 2004
Bem sei que os tempos não vão de feição para estas coisas, mas não resisto. Independentemente de os atentados em Madrid terem sido cometidos pela ETA ou pela Al-Qaeda — ou por outra seita qualquer —, é evidente que ali há mão do sr. Aznar. Porque domingo há eleições em Espanha, e tragédias destas costumam beneficiar quem está no poder. O plano nem sequer foi original. Como se recordarão, George W. Bush estava ao corrente do 11 de Setembro — ou mesmo por trás do 11 de Setembro. Ora, tendo em conta que Bush e Aznar são unha com carne, é provável que o primeiro tenha inspirado o segundo. Temos, pois, que o verdadeiro culpado dos atentados em Espanha nem é o sr. Aznar, mas o sr. Bush. E está bom de ver porquê: Bush defende que não se pode ficar de braços cruzados perante a escalada do terrorismo, e nada melhor que um atentado de grande envergadura para dar consistência à tese. Como já houve por aí quem notasse, a coisa é tão clara que até cega.
11 de março de 2004
O último ataque terrorista em Espanha veio lembrar o que toda a gente sabe mas não quer acreditar: por mais voltas que se dê, por mais medidas que se tomem, não há maneira de evitar ataques terroristas. Assim sendo, o que fazer? George W. Bush, o ignorante, defende que é preciso agir contra os terroristas antes que eles ajam contra nós. É a famosa guerra preventiva, outra versão da tese de que a melhor defesa é o ataque. Outros dizem que nem pensar, que assim não pode ser, mas não apresentam alternativas. E, se apresentam, não passam de abstracções. Infelizmente o terrorismo não se compadece com abstracções e só conhece uma forma de negociar: à bomba. De modo que só há duas soluções: ou eles, ou nós.
10 de março de 2004
Graças à Voz do Deserto, descobri o julioiglesias — e já está na minha lista de favoritos. Aproveitei, ainda, para actualizar a lista de blogues aqui ao lado, tirando uns e acrescentando outros. Ah, já me esquecia. Consta-me que ando a mandar e-mails com vírus. Ora, eu quero avisar que, a ser verdade (e deve ser, porque tenho recebido vários e-mails dando-me conta disso), não faço a mais pequena ideia do que se passa. O Norton diz-me que não há nada, mas eu não confio no Norton. Pelo sim, pelo não, já fiz uma cópia de segurança dos ficheiros importantes, provavelmente já infectados com vírus. É a vida. Se alguém souber como resolver o caso, agradeço. E desculpem qualquer coisinha.
A notícia de que a Câmara de Lisboa comprou o Hotel Bragança com o objectivo de lá instalar a futura Casa Eça de Queirós — que está a gerar controvérsia, pois há dúvidas de que seja o mesmo Hotel Bragança de que fala "Os Maias" (ou "A Correspondência de Fradique Mendes", já agora) — fez-me lembrar uma carta de Fradique Mendes a Madame de Jouarre em que este lhe conta as peripécias de uma viagem de comboio entre o Porto e Lisboa. Vale a pena ler na íntegra:
*
Lisboa, Março.
Minha querida madrinha.
Foi ontem, por noite morta, no comboio, ao chegar a Lisboa (vindo do Norte e do Porto), que de repente me acudiu à memória estremunhada o juramento que lhe fiz no sábado de Páscoa em Paris, com as mãos piamente estendidas sobre a sua maravilhosa edição dos «Deveres» de Cícero. Juramento bem estouvado, este, de lhe mandar todas as semanas, pelo correio, Portugal em «descrições, notas, reflexões e panoramas», como se lê no subtítulo da «Viagem à Suíça» do seu amigo o barão de Fernay, comendador de Carlos III e membro da Academia de Toulouse. Pois com tanta fidelidade cumpro eu os meus juramentos (quando feitos sobre a moral de Cícero, e para regalo de quem reina na minha vontade) que, apenas o recordei, abri logo escancaradamente ambos os olhos para recolher «descrições, notas, reflexões e panoramas» desta terra que é minha e que está a la disposition de usted... Chegáramos a uma estação que chamam de Sacavém — e tudo o que os meus olhos arregalados viram do meu país, através dos vidros húmidos do vagão, foi uma densa treva, donde mortiçamente surgiam aqui e além luzinhas remotas e vagas. Eram lanternas de faluas dormindo no rio: — e simbolizavam de um modo bem humilhante essas escassas e desmaiadas parcelas de verdade positiva que ao homem é dado descobrir no universal mistério do Ser. De sorte que tornei a cerrar resignadamente os olhos — até que, à portinhola, um homem de boné de galão, com o casaco encharcado de água, reclamou o meu bilhete, dizendo «Vossa Excelência»! Em Portugal, boa madrinha, todos somos nobres, todos fazemos parte do Estado, e todos nos tratamos por «Excelência».
Era Lisboa e chovia. Vínhamos poucos no comboio, uns trinta talvez — gente simples, de maletas ligeiras e sacos de chita, que bem depressa atravessou a busca paternal e sonolenta da Alfândega, e logo se sumiu para a cidade sob a molhada noite de Março.
No casarão soturno, à espera das bagagens sérias, fiquei eu, o Smith* e uma senhora esgrouviada, de óculos no bico, envolta numa velha capa de peles. Deviam ser duas horas da madrugada. O asfalto sujo do casarão regelava os pés.
Não sei quantos séculos assim esperámos, Smith imóvel, a dama e eu marchando desencontradamente e rapidamente para aquecer ao comprido do balcão de madeira, onde dois guardas de Alfândega, escuros como azeitonas, bocejavam com dignidade. Da porta do fundo, uma carreta, em que oscilava o montão da nossa bagagem, veio por fim rolando com pachorra. A dama de nariz de cegonha reconheceu logo a sua caixa de folha-de-flandres, cuja tampa, caindo para trás, revelou aos meus olhos que observavam (em seu serviço, exigente madrinha!) um penteador sujo, uma boceta de doce, um livro de missa e dois ferros de frisar. O guarda enterrou o braço através destas coisas íntimas, e com um gesto clemente declarou a Alfândega satisfeita. A dama abalou.
Ficámos sós, Smith e eu. Smith já arrebanhara a custo a minha bagagem. Mas faltava inexplicavelmente um saco de couro, e em silêncio, com a guia na mão, um carregador dava uma busca vagarosa através dos fardos, barricas, pacotes, velhos baús, armazenados ao fundo, contra a parede enxovalhada. Vi este digno homem hesitando pensativamente diante de um embrulho de lona, diante de uma arca de pinho. Seria qualquer desses o saco de couro? Depois, descoroçoado, declarou que positivamente nas nossas bagagens não havia nem couro nem saco. Smith protestava, já irritado. Então o capataz arrancou a guia das mãos inábeis do carregador, e recomeçou ele, com a sua inteligência superior de chefe, uma rebusca através das «arrumações», esquadrinhando zelosamente caixotes, vasilhas, pipos, chapeleiras, canastras, latas e garrafões... Por fim sacudiu os ombros, com indizível tédio, e desapareceu para dentro, para a escuridão das plataformas interiores. Passados instantes voltou, coçando a cabeça por baixo do boné, cravando os olhos em roda, pelo chão vazio, à espera que o saco rompesse das entranhas deste globo desconsolador. Nada! Impaciente, encetei eu próprio uma pesquisa sôfrega através do casarão. O guarda da Alfândega, de cigarro colado ao beiço (bondoso homem!), deitava também aqui e além um olhar auxiliador e magistral. Nada, Repentinamente porém uma mulher de lenço vermelho na cabeça, que ali vadiava, naquela madrugada agreste, apontou para a porta da estação:
— Será aquilo, meu senhor?
Era! Era o meu saco, fora, no passeio, sob a chuvinha miúda. Não indaguei como ele se encontrava ali, sozinho, separado da bagagem a que estritamente o prendia o número de ordem estampado na guia em letras grossas — e reclamei uma tipóia. O carregador atirou a jaleca para cima da cabeça, saiu ao largo, e recolheu logo anunciando com melancolia que não havia tipóias.
— Não há! Essa é curiosa! Então como saem daqui os passageiros?
O homem encolheu os ombros. «Às vezes havia, outras vezes não havia, era conforme calhava a sorte...» Fiz reluzir uma placa de cinco tostões, e supliquei àquele benemérito que corresse às vizinhanças da estação, à cata de um veículo qualquer com rodas, coche ou carroça, que me levasse ao conchego de um caldo e de um lar. O homem largou, resmungando. E eu logo, como patriota descontente, censurei (voltado para o capataz e para o homem da Alfândega) a irregularidade daquele serviço. Em todas as estações do mundo, mesmo em Tunis, mesmo na Romélia, havia, à chegada dos comboios, ónibus, carros, carretas, para transportar gente e bagagem... Porque não as havia em Lisboa? Eis aí um abominável serviço que desonrava a Nação!
O aduaneiro esboçou um movimento de desalento, como na plena consciência de que todos os serviços eram abomináveis, e a Pátria toda uma irreparável desordem. Depois para se consolar puxou com delícia o lume ao cigarro. Assim se arrastou um destes quartos de hora que fazem rugas na face humana.
Finalmente, o carregador voltou, sacudindo a chuva, afirmando que não havia uma tipóia em todo o bairro de Santa Apolónia.
— Mas que hei-de eu fazer? Hei-de ficar aqui?
O capataz aconselhou-me que deixasse a bagagem, e na manhã seguinte, com uma carruagem certa (contratada talvez por escritura), a viesse recolher «muito a meu contento». Essa separação porém não convinha ao meu conforto. Pois nesse caso ele não via solução, a não ser que por acaso alguma caleche, tresnoitada e tresmalhada, viesse a cruzar por aquelas paragens.
Então, à maneira de náufragos numa ilha deserta do Pacífico, todos nos apinhámos à porta da estação, esperando através da treva a vela — quero dizer a sege salvadora. Espera amarga, espera estéril! Nenhuma luz de lanterna, nenhum rumor de rodas, cortaram a mudez daqueles ermos.
Farto, inteiramente farto, o capataz declarou que «iam dar três horas, e ele queria fechar a estação!» E eu? Ia eu ficar ali na rua, amarrado, sob a noite agreste, a um montão de bagagens intransportável? Não! nas entranhas do digno capataz decerto havia melhor misericórdia. Comovido, o homem lembrou outra solução. E era que nós, eu e o Smith, ajudados por um carregador — atirássemos a bagagem para as costas, e marchássemos com ela para o hotel. Com efeito este parecia ser o único recurso aos nossos males. Todavia (tanto costas amolecidas por longos e deleitosos anos de civilização repugnam a carregar fardos, e tão tenaz é a esperança naqueles a quem a sorte se tem mostrado amorável) eu e o Smith ainda uma vez saímos ao largo, mudos, sondando a escuridão, com o ouvido inclinado ao lajedo, a escutar ansiosamente se ao longe, muito ao longe, não sentiríamos rolar para nós o calhambeque da Providência. Nada, desoladamente nada, na sombra avara!... A minha querida madrinha, seguindo estes lances, deve ter já lágrimas a bailar nas suas compassivas pestanas. Eu não chorei — mas tinha vergonha, uma imensa e pungente vergonha do Smith! Que pensaria aquele escocês da minha pátria — e de mim, seu amo, parcela dessa pátria desorganizada? Nada mais frágil que a reputação das nações. Uma simples tipóia que falta de noite, e eis, no espírito do estrangeiro, desacreditada toda uma civilização secular!
No entanto o capataz fervia. Eram três horas (mesmo três e um quarto), e ele queria fechar a estação! Que fazer! Abandonámo-nos, suspirando, à decisão do desespero. Agarrei o estojo de viagem e o rolo de mantas: Smith deitou aos seus respeitáveis ombros, virgens de cargas, uma grossa maleta de couro: o carregador gemeu sob a enorme mala de cantoneiras de aço. E (deixando ainda dois volumes para ser recolhidos de dia) começámos, sombrios e em fila, a trilhar à pata a distância que vai de Santa Apolónia ao Hotel Bragança! Poucos passos adiante, como o estojo de viagem me derreava o braço, atirei-o para as costas... E todos três, de cabeça baixa, o dorso esmagado sob dezenas de quilos, com um intenso azedume a estragar-nos o fígado, lá continuámos, devagar, numa fileira soturna, avançando para dentro da capital destes reinos! Eu viera a Lisboa com um fim de repouso e de luxo. Este era o luxo, este o repouso! Ali, sob a chuvinha impertinente, ofegando, suando, tropeçando no lajedo mal junto de uma rua tenebrosa, a trabalhar de carrejão!...
Não sei quantas eternidades gastámos nesta via dolorosa. Sei que de repente (como se a trouxesse, à rédea, o anjo da nossa guarda) uma caleche, uma positiva caleche, rompeu a passo do negrume de uma viela. Três gritos, sôfregos e desesperados, estacaram a parelha. E, à uma, todas as malas rolaram em catadupa sobre o calhambeque, aos pés do cocheiro, que, tomado de assalto e de assombro, ergueu o chicote, praguejando com furor. Mas serenou, compreendendo a sua espantosa omnipotência — e declarou que ao Hotel Bragança (uma distância pouco maior que toda a Avenida dos Campos Elísios) não me podia levar por menos de «três mil réis». Sim, minha madrinha, «dezoito francos»! Dezoito francos em metal, prata ou ouro, por uma corrida, nesta Idade Democrática e Industrial, depois de todo o penoso trabalho das Ciências e das Revoluções para igualizarem e embaratecerem os confortos sociais. Trémulo de cólera, mas submisso como quem cede à exigência de um trabuco, enfiei para a tipóia — depois de me ter despedido com grande afecto do carregador, camarada fiel da nossa trabalhosa noite.
Partimos enfim, num galope desesperado. Dai a momentos estávamos assaltando a porta adormecida do Hotel Bragança, com repiques, clamores, punhadas, cócegas, injúrias, gemidos, todas as violências e todas as seduções. Debalde! Não foi mais resistente ao belo cavaleiro Percival o portão de ouro do Palácio da Ventura! Finalmente o cocheiro atirou-se a ela aos coices. E, decerto por compreender melhor esta linguagem, a porta, lenta e estremunhada, rolou nos seus gonzos! Graças te sejam, meu Deus, Pai inefável! Estamos enfim sob um tecto, no meio dos tapetes e estuques do Progresso, ao cabo de tão bárbara jornada. Restava pagar o batedor. Vim para ele com acerba ironia:
— Então, são três mil réis?
À luz do vestíbulo, que me batia a face, o homem sorria. E que há-de ele responder, o malandro sem par?
— Aquilo era por dizer... Eu não tinha conhecido o sr. D. Fradique... Lá para o sr. D. Fradique é o que quiser.
Humilhação incomparável! Senti logo não sei que torpe enternecimento que me amolecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a disciplina e toda a ordem. Sim, minha cara madrinha... Aquele bandido conhecia o sr. D. Fradique. Tinha um sorriso brejeiro e serviçal. Ambos éramos portugueses. Dei uma libra àquele bandido!
E aqui está, para seu ensino, a verídica maneira por que se entra, no último quartel do século XIX, na grande cidade de Portugal. Todo seu, aquele que longe de si sempre pena,
Fradique
* O velho criado de quarto de Fradique Mendes.
*
Lisboa, Março.
Minha querida madrinha.
Foi ontem, por noite morta, no comboio, ao chegar a Lisboa (vindo do Norte e do Porto), que de repente me acudiu à memória estremunhada o juramento que lhe fiz no sábado de Páscoa em Paris, com as mãos piamente estendidas sobre a sua maravilhosa edição dos «Deveres» de Cícero. Juramento bem estouvado, este, de lhe mandar todas as semanas, pelo correio, Portugal em «descrições, notas, reflexões e panoramas», como se lê no subtítulo da «Viagem à Suíça» do seu amigo o barão de Fernay, comendador de Carlos III e membro da Academia de Toulouse. Pois com tanta fidelidade cumpro eu os meus juramentos (quando feitos sobre a moral de Cícero, e para regalo de quem reina na minha vontade) que, apenas o recordei, abri logo escancaradamente ambos os olhos para recolher «descrições, notas, reflexões e panoramas» desta terra que é minha e que está a la disposition de usted... Chegáramos a uma estação que chamam de Sacavém — e tudo o que os meus olhos arregalados viram do meu país, através dos vidros húmidos do vagão, foi uma densa treva, donde mortiçamente surgiam aqui e além luzinhas remotas e vagas. Eram lanternas de faluas dormindo no rio: — e simbolizavam de um modo bem humilhante essas escassas e desmaiadas parcelas de verdade positiva que ao homem é dado descobrir no universal mistério do Ser. De sorte que tornei a cerrar resignadamente os olhos — até que, à portinhola, um homem de boné de galão, com o casaco encharcado de água, reclamou o meu bilhete, dizendo «Vossa Excelência»! Em Portugal, boa madrinha, todos somos nobres, todos fazemos parte do Estado, e todos nos tratamos por «Excelência».
Era Lisboa e chovia. Vínhamos poucos no comboio, uns trinta talvez — gente simples, de maletas ligeiras e sacos de chita, que bem depressa atravessou a busca paternal e sonolenta da Alfândega, e logo se sumiu para a cidade sob a molhada noite de Março.
No casarão soturno, à espera das bagagens sérias, fiquei eu, o Smith* e uma senhora esgrouviada, de óculos no bico, envolta numa velha capa de peles. Deviam ser duas horas da madrugada. O asfalto sujo do casarão regelava os pés.
Não sei quantos séculos assim esperámos, Smith imóvel, a dama e eu marchando desencontradamente e rapidamente para aquecer ao comprido do balcão de madeira, onde dois guardas de Alfândega, escuros como azeitonas, bocejavam com dignidade. Da porta do fundo, uma carreta, em que oscilava o montão da nossa bagagem, veio por fim rolando com pachorra. A dama de nariz de cegonha reconheceu logo a sua caixa de folha-de-flandres, cuja tampa, caindo para trás, revelou aos meus olhos que observavam (em seu serviço, exigente madrinha!) um penteador sujo, uma boceta de doce, um livro de missa e dois ferros de frisar. O guarda enterrou o braço através destas coisas íntimas, e com um gesto clemente declarou a Alfândega satisfeita. A dama abalou.
Ficámos sós, Smith e eu. Smith já arrebanhara a custo a minha bagagem. Mas faltava inexplicavelmente um saco de couro, e em silêncio, com a guia na mão, um carregador dava uma busca vagarosa através dos fardos, barricas, pacotes, velhos baús, armazenados ao fundo, contra a parede enxovalhada. Vi este digno homem hesitando pensativamente diante de um embrulho de lona, diante de uma arca de pinho. Seria qualquer desses o saco de couro? Depois, descoroçoado, declarou que positivamente nas nossas bagagens não havia nem couro nem saco. Smith protestava, já irritado. Então o capataz arrancou a guia das mãos inábeis do carregador, e recomeçou ele, com a sua inteligência superior de chefe, uma rebusca através das «arrumações», esquadrinhando zelosamente caixotes, vasilhas, pipos, chapeleiras, canastras, latas e garrafões... Por fim sacudiu os ombros, com indizível tédio, e desapareceu para dentro, para a escuridão das plataformas interiores. Passados instantes voltou, coçando a cabeça por baixo do boné, cravando os olhos em roda, pelo chão vazio, à espera que o saco rompesse das entranhas deste globo desconsolador. Nada! Impaciente, encetei eu próprio uma pesquisa sôfrega através do casarão. O guarda da Alfândega, de cigarro colado ao beiço (bondoso homem!), deitava também aqui e além um olhar auxiliador e magistral. Nada, Repentinamente porém uma mulher de lenço vermelho na cabeça, que ali vadiava, naquela madrugada agreste, apontou para a porta da estação:
— Será aquilo, meu senhor?
Era! Era o meu saco, fora, no passeio, sob a chuvinha miúda. Não indaguei como ele se encontrava ali, sozinho, separado da bagagem a que estritamente o prendia o número de ordem estampado na guia em letras grossas — e reclamei uma tipóia. O carregador atirou a jaleca para cima da cabeça, saiu ao largo, e recolheu logo anunciando com melancolia que não havia tipóias.
— Não há! Essa é curiosa! Então como saem daqui os passageiros?
O homem encolheu os ombros. «Às vezes havia, outras vezes não havia, era conforme calhava a sorte...» Fiz reluzir uma placa de cinco tostões, e supliquei àquele benemérito que corresse às vizinhanças da estação, à cata de um veículo qualquer com rodas, coche ou carroça, que me levasse ao conchego de um caldo e de um lar. O homem largou, resmungando. E eu logo, como patriota descontente, censurei (voltado para o capataz e para o homem da Alfândega) a irregularidade daquele serviço. Em todas as estações do mundo, mesmo em Tunis, mesmo na Romélia, havia, à chegada dos comboios, ónibus, carros, carretas, para transportar gente e bagagem... Porque não as havia em Lisboa? Eis aí um abominável serviço que desonrava a Nação!
O aduaneiro esboçou um movimento de desalento, como na plena consciência de que todos os serviços eram abomináveis, e a Pátria toda uma irreparável desordem. Depois para se consolar puxou com delícia o lume ao cigarro. Assim se arrastou um destes quartos de hora que fazem rugas na face humana.
Finalmente, o carregador voltou, sacudindo a chuva, afirmando que não havia uma tipóia em todo o bairro de Santa Apolónia.
— Mas que hei-de eu fazer? Hei-de ficar aqui?
O capataz aconselhou-me que deixasse a bagagem, e na manhã seguinte, com uma carruagem certa (contratada talvez por escritura), a viesse recolher «muito a meu contento». Essa separação porém não convinha ao meu conforto. Pois nesse caso ele não via solução, a não ser que por acaso alguma caleche, tresnoitada e tresmalhada, viesse a cruzar por aquelas paragens.
Então, à maneira de náufragos numa ilha deserta do Pacífico, todos nos apinhámos à porta da estação, esperando através da treva a vela — quero dizer a sege salvadora. Espera amarga, espera estéril! Nenhuma luz de lanterna, nenhum rumor de rodas, cortaram a mudez daqueles ermos.
Farto, inteiramente farto, o capataz declarou que «iam dar três horas, e ele queria fechar a estação!» E eu? Ia eu ficar ali na rua, amarrado, sob a noite agreste, a um montão de bagagens intransportável? Não! nas entranhas do digno capataz decerto havia melhor misericórdia. Comovido, o homem lembrou outra solução. E era que nós, eu e o Smith, ajudados por um carregador — atirássemos a bagagem para as costas, e marchássemos com ela para o hotel. Com efeito este parecia ser o único recurso aos nossos males. Todavia (tanto costas amolecidas por longos e deleitosos anos de civilização repugnam a carregar fardos, e tão tenaz é a esperança naqueles a quem a sorte se tem mostrado amorável) eu e o Smith ainda uma vez saímos ao largo, mudos, sondando a escuridão, com o ouvido inclinado ao lajedo, a escutar ansiosamente se ao longe, muito ao longe, não sentiríamos rolar para nós o calhambeque da Providência. Nada, desoladamente nada, na sombra avara!... A minha querida madrinha, seguindo estes lances, deve ter já lágrimas a bailar nas suas compassivas pestanas. Eu não chorei — mas tinha vergonha, uma imensa e pungente vergonha do Smith! Que pensaria aquele escocês da minha pátria — e de mim, seu amo, parcela dessa pátria desorganizada? Nada mais frágil que a reputação das nações. Uma simples tipóia que falta de noite, e eis, no espírito do estrangeiro, desacreditada toda uma civilização secular!
No entanto o capataz fervia. Eram três horas (mesmo três e um quarto), e ele queria fechar a estação! Que fazer! Abandonámo-nos, suspirando, à decisão do desespero. Agarrei o estojo de viagem e o rolo de mantas: Smith deitou aos seus respeitáveis ombros, virgens de cargas, uma grossa maleta de couro: o carregador gemeu sob a enorme mala de cantoneiras de aço. E (deixando ainda dois volumes para ser recolhidos de dia) começámos, sombrios e em fila, a trilhar à pata a distância que vai de Santa Apolónia ao Hotel Bragança! Poucos passos adiante, como o estojo de viagem me derreava o braço, atirei-o para as costas... E todos três, de cabeça baixa, o dorso esmagado sob dezenas de quilos, com um intenso azedume a estragar-nos o fígado, lá continuámos, devagar, numa fileira soturna, avançando para dentro da capital destes reinos! Eu viera a Lisboa com um fim de repouso e de luxo. Este era o luxo, este o repouso! Ali, sob a chuvinha impertinente, ofegando, suando, tropeçando no lajedo mal junto de uma rua tenebrosa, a trabalhar de carrejão!...
Não sei quantas eternidades gastámos nesta via dolorosa. Sei que de repente (como se a trouxesse, à rédea, o anjo da nossa guarda) uma caleche, uma positiva caleche, rompeu a passo do negrume de uma viela. Três gritos, sôfregos e desesperados, estacaram a parelha. E, à uma, todas as malas rolaram em catadupa sobre o calhambeque, aos pés do cocheiro, que, tomado de assalto e de assombro, ergueu o chicote, praguejando com furor. Mas serenou, compreendendo a sua espantosa omnipotência — e declarou que ao Hotel Bragança (uma distância pouco maior que toda a Avenida dos Campos Elísios) não me podia levar por menos de «três mil réis». Sim, minha madrinha, «dezoito francos»! Dezoito francos em metal, prata ou ouro, por uma corrida, nesta Idade Democrática e Industrial, depois de todo o penoso trabalho das Ciências e das Revoluções para igualizarem e embaratecerem os confortos sociais. Trémulo de cólera, mas submisso como quem cede à exigência de um trabuco, enfiei para a tipóia — depois de me ter despedido com grande afecto do carregador, camarada fiel da nossa trabalhosa noite.
Partimos enfim, num galope desesperado. Dai a momentos estávamos assaltando a porta adormecida do Hotel Bragança, com repiques, clamores, punhadas, cócegas, injúrias, gemidos, todas as violências e todas as seduções. Debalde! Não foi mais resistente ao belo cavaleiro Percival o portão de ouro do Palácio da Ventura! Finalmente o cocheiro atirou-se a ela aos coices. E, decerto por compreender melhor esta linguagem, a porta, lenta e estremunhada, rolou nos seus gonzos! Graças te sejam, meu Deus, Pai inefável! Estamos enfim sob um tecto, no meio dos tapetes e estuques do Progresso, ao cabo de tão bárbara jornada. Restava pagar o batedor. Vim para ele com acerba ironia:
— Então, são três mil réis?
À luz do vestíbulo, que me batia a face, o homem sorria. E que há-de ele responder, o malandro sem par?
— Aquilo era por dizer... Eu não tinha conhecido o sr. D. Fradique... Lá para o sr. D. Fradique é o que quiser.
Humilhação incomparável! Senti logo não sei que torpe enternecimento que me amolecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a disciplina e toda a ordem. Sim, minha cara madrinha... Aquele bandido conhecia o sr. D. Fradique. Tinha um sorriso brejeiro e serviçal. Ambos éramos portugueses. Dei uma libra àquele bandido!
E aqui está, para seu ensino, a verídica maneira por que se entra, no último quartel do século XIX, na grande cidade de Portugal. Todo seu, aquele que longe de si sempre pena,
Fradique
* O velho criado de quarto de Fradique Mendes.
9 de março de 2004
8 de março de 2004
Não sou simpatizante do CDS/PP, mas custou-me ver como os políticos usaram e abusaram do caso Ferreira Torres para atacarem o CDS/PP. Porque eu não duvido que Ferreira Torres — cuja ideologia ninguém conhece — podia estar no PS, no PC ou no PSD, só para falar dos grandes partidos. Também não sou simpatizante de Paulo Portas, mas tiro-lhe o chapéu por desafiar Mário Soares para um debate televisivo «à velha maneira». E pago para ver.
Afinal, o ex-candidato a candidato Howard Dean afastou-se da corrida à Casa Branca por causa do mau funcionamento de um microfone, diz o Filipe Moura. Não, o "post" ("Howard Dean - A Verdade") não é para rir.
5 de março de 2004
"África Minha" é um livro que só conhecia por ter dado um filme, por sinal um filme famoso que nunca vi. Daí que foi sem grande entusiasmo que espreitei as primeiras páginas, e só o comprei porque tenho um contrato com o meu distribuidor de jornais que prevê a compra do "Público" de quarta enquanto este vier acompanhado de um livro. Mas enganei-me redondamente. Lidas as primeiras páginas, fiquei completamente agarrado. É verdade que o tema ajuda, mas um bom tema nem sempre dá um bom livro. E nem algumas ideias politicamente incorrectas que lá se defendem diminuem a beleza do livro, porque não é um livro de ideias e as que há não podem deixar de ser vistas à luz da época.
4 de março de 2004
Se vi bem, um comandante da GNR não sei de onde foi notícia no "Jornal da Tarde" da RTP... por ter cumprido a lei. Mais exactamente por não ter perdoado uma multa de trânsito ao próprio filho. Ora, quando um cidadão é notícia por se ter limitado a cumprir as suas obrigações só pode ser um sinal de que estamos perante uma excepção. Não é assim? Bom, é capaz de não ser bem assim. Mas é a ideia que fica, e isso já é mau que chegue.
3 de março de 2004
Custa-me a entender porque se insiste tanto na tecla de que Ferreira Torres devia ter sido preso na hora dos desacatos. Ora, preso por quem? Por meia dúzia de agentes que se encontravam no campo? Por amor de deus! Os agentes estão fartos de saber que Ferreira Torres é o manda-chuva lá do sítio, praticamente dono do campo que estavam a policiar e não tem medo de nada e ninguém. Prendê-lo seria um erro. Um erro que pagariam caro.
2 de março de 2004
João Miguel Tavares chamou atenção para o óbvio: as derrotas das equipas de futebol não se devem, somente, aos erros cometidos — mas, também, ao mérito dos adversários. Ora, há anos que ando a lembrar esta evidência e ninguém me liga.
1 de março de 2004
Gostei do pontapé do sr. Avelino Ferreira Torres e de o ouvir dizer que voltaria a fazer o mesmo caso fosse confrontado com situação idêntica. Digo gostei porque, logo a seguir, o senhor Madaíl veio dizer que nunca imaginou que «situações destas pudessem acontecer no Portugal de 2004», e eu fiquei logo maldisposto. Porque eu prefiro um pontapé genuíno a uma indignação hipócrita.
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