29 de outubro de 2011

ESTOU A LER (3). «Um Tamisa Iívido e lamacento ao anoitecer, quando a maré sobe ao longo dos pilares das pontes: neste cenário que as crónicas deste ano trouxeram à actualidade sob a luz mais lúgubre, um barco avança a rasar os troncos flutuantes, as chatas, os destroços. À proa do barco, um homem de olhar de abutre fita a corrente como quem procura alguma coisa; aos remos, semi-oculta por um capuz e uma capa de oleado, está uma donzela de rosto angélico. O que procuram? Não se tarda a perceber que o homem recolhe cadáveres de suicidas ou de assassinados atirados ao rio: para este tipo de pesca as águas do Tamisa parece que todos os dias são generosas. Avistado um corpo à flor das águas, o homem é rápido a esvaziar-lhe os bolsos das moedas de ouro, e depois a puxá-lo com uma corda até um posto da polícia na margem, onde receberá uma recompensa. A donzela angélica, filha do barqueiro, tenta não olhar para o macabro achado; está aterrada, mas continua a remar.» Italo Calvino, ensaio (Charles Dickens, Our Mutual Friend) publicado no volume Porquê Ler os Clássicos?
ESTOU A LER (2). «Estudo, desde há semanas, a biografia de Louis de Rougemont, considerado um pioneiro em toda a acepção da palavra, o primeiro caso moderno de viajante imóvel. Este viajante helvético, que há mais de um século causou sensação em Londres publicando na Wide World Magazine as espectaculares crónicas das suas experiências viajantes, podia ter contado que tinha estado entre canibais em Maiorca, mas preferiu ir muito mais longe. Foi para os antípodas, a Austrália. Antes, tinha-se dedicado, entre escafandros e batíscafos, à pesca de pérolas frente à costa meridional da Nova Guiné, mas uma tempestade desviou-o para o continente australiano, onde durante trinta anos foi chefe de uma tribo canibal, viajou em cima de tartarugas gigantes, curou-se de certas doenças dormindo dentro de búfalos mortos, e teve um filho da nativa Yamba, que ela devorou em frente dele. Uma vida que impressionou os ingleses. Quando a patranha foi descoberta — o tal Rougemont, na realidade, chamava-se Green (ou Grin) e, embora tivesse sido açougueiro na Austrália, a maior parte da sua vida não tinha saído da biblioteca do Museu Britânico —, o genial fabulador procurou sobreviver dando conferências e anunciando-se como o maior embusteiro do mundo. Sir Osbert Sitwell, que seguiu os seus tristes últimos passos, recorda-o a vender fósforos na Avenida Shaftesbury. “Este fantasma sem abrigo vestia um sobretudo velho e esfarrapado, sobre o qual caía o seu cabelo ralo, e tinha um rosto sereno, filosófico, curiosamente inteligente. Comprei-lhe uma caixa e disse-me, como se sussurrasse, que os fósforos eram verdadeiros.”» Enrique Vila-Matas, Diário Volúvel

27 de outubro de 2011

OS TANSOS DO COSTUME. Definitivamente que a Igreja Católica não tem emenda. Ansiosa por apoucar o mais recente livro de Rodrigues dos Santos, precipitou-se e acabou por fazer precisamente o contrário do que pretendia: promover aquilo que, na sua opinião, é uma obra medíocre, aguçando o apetite a quem não daria pelo livro caso não fosse a polémica. Verdade que o autor e seus promotores fizeram os possíveis para provocar a ira da igreja, mas julguei que até por esse motivo a igreja não cairia na esparrela. Como é evidente, enganei-me. A Igreja Católica voltou a cair na armadilha, e caiu no ridículo. O Último Segredo «não é verdadeira literatura»? «É uma imitação requentada, superficial e maçuda»? Não li, mas não me surpreenderia. Tal como não me surpreende quando a Igreja Católica acusa Rodrigues dos Santos de «intolerância desabrida» por alegadamente o romancista ter questionado a «fiabilidade das verdades de Fé em que os católicos acreditam», outra burrice. Obviamente que a polémica tem um beneficiário: Rodrigues dos Santos, que assim alcança, com o seu mais recente romance, um impacto que dificilmente teria se o motivo fosse estritamente literário. E claramente um prejudicado: a Igreja Católica, que mais uma vez demonstrou não saber lidar com quem lhe questiona os dogmas, mesmo numa obra de ficção, acabando a promover o que detesta e a dar mais um tiro no pé.

25 de outubro de 2011

TARDE E A MÁS HORAS. Obviamente que a renúncia aos subsídios de alojamento por parte do ministro da Administração Interna e do secretário de Estado das Comunidades pecou por tardia, e apenas se concretizou devido à pressão dos media. Será preciso lembrar que num país a sério o expediente destes nossos governantes os levaria à demissão? Será preciso dizer que o expediente, apesar de legal, é eticamente insustentável? Sim, foi preciso dizer tudo isto e muito mais para que os cavalheiros fizessem o mínimo dos mínimos: prescindir de mordomias que o espírito da lei não consagra — e apesar de grande parte dos portugueses estar a ser espoliado, pelo Governo a que pertencem, dos seus rendimentos mais básicos. Sobra o exemplo, o péssimo exemplo, logo vindo de quem se esperariam os melhores exemplos e que fossem os primeiros a praticá-los.

20 de outubro de 2011

BRINCAR COM O FOGO. Como alguém já disse, se o Presidente da República considera que os cortes de subsídios de férias e Natal na administração pública previstos na proposta de lei do Orçamento para o próximo ano representam «a violação de um princípio básico de equidade fiscal», espera-se que aja em conformidade. E agir em conformidade significará fazer uma de duas coisas: obrigar o Governo a retirar a medida do Orçamento, ou vetar um Orçamento que contemple tais medidas. Ao que parece, nada disto vai suceder. Sobra, portanto, uma pergunta: o que pretende Cavaco? Não sou adepto da paz podre, mesmo em períodos em que a paz podre possa ter alguma utilidade. Mas deitar gasolina na fogueira é a última coisa que se espera de um Presidente da República.
Não esquecer

18 de outubro de 2011

A GRANDE MÚSICA (9)

ESTOU A LER (1). «Quem na Holanda tem telhados de alguma importância há-de lembrar-se dum sujeito calvo, baixote, com bigode, que carregava uma pasta impressionante, na qual em letras douradas estava impresso The Chattanooga Petroleum Company. O ouro das letras e aquela palavrinha mágica, Petroleum, impressionavam. Eu próprio só mais tarde descobriria que a companhia tinha de petrolífero apenas o facto de utilizar o alcatrão como matéria prima para os seus produtos.» Rentes de Carvalho, Com os Holandeses

14 de outubro de 2011

MISÉRIA CRIATIVA. Tal como sucedeu com Ninguém Escreve ao Coronel, que escreveu em Paris enquanto vivia na penúria, García Márquez passou apertos financeiros durante grande parte dos catorze meses que demorou a escrever Cem Anos de Solidão, apertos que o levaram a vender alguns bens (automóvel, rádio, televisor, secador de cabelo, aquecedor) e a acumular dívidas resultantes de produtos de primeira necessidade (mercearia, talho, etc.). Segundo García Márquez: el viaje a la semilla, por muitos considerada a mais completa biografia do escritor, Gabo terá enviado ao editor de Cem Anos de Solidão apenas metade do manuscrito por não ter dinheiro bastante para mandar a totalidade, e posteriormente ter-se-á visto obrigado a vender mais uns tarecos para suportar os custos de envio do restante. Sim, antigamente os artistas passavam toda a espécie de privações — e produziam obras notáveis. Hoje há bolsas de criação literária, lugares apropriados para escrever — e o resultado são obras que ao fim de dois anos já ninguém se lembra. Cada vez me convenço mais de que a fartura é inimiga das artes em geral e da literatura em particular, mas talvez seja um sintoma de que estou e ficar velho.

13 de outubro de 2011

ROBERT WALSER NÃO MERECIA ISTO. Por não dominar o alemão, comecei a ler Os Irmãos Tanner em tradução inglesa, e como prefiro em português quando é tradução, comprei a edição da Relógio D’Água mal tive oportunidade. Como demonstrarei a seguir, em má hora, que a tradução é tão má que só vendo. Além das redundâncias («bastante estupefacto», «deliciava bastante», «bastante irrelevante», «os pensamentos podem pensar», etc.), detectei as seguintes misérias só no primeiro capítulo (onze páginas):

«Não era, porém, exactamente esse o caso, pelo menos até agora, na verdade, o contrário é que se verificava, e a tal ponto que o Dr. Klaus começou a recriminar-se vivamente.» (Página 9)

«Eis um novo incumprimento, e apenas provava de forma exemplar que mesmo as pessoas mais escrupulosas nunca conseguem cumprir todos os seus deveres, mais ainda, que são sobretudo elas quem muitas vezes ignoram os seus deveres mais importantes para só mais tarde, porventura tarde de mais, se lembrarem de novo deles.» (Página 10)


«Ainda vais a tempo de te tornares um excelente e brilhante vencedor, e nem imaginas até que ponto um vendedor tem a oportunidade de transformar a sua vida numa vida fundamentalmente cheia de vida.» (Página 11)

«Talvez devesse ter intervindo mais cedo e ajudado mais com actos e menos com palavras de incentivo, mas não sei, orgulhoso como és, com um orgulho que se ajuda sempre e apenas a si próprio, se calhar mais depressa te ofendia, em vez de te convencer.» (Página 11)

«Talvez sejas mais rico do que eu, talvez tenhas mais esperanças e mais razão em acalentá-las, tens planos e perspectivas que eu nem sequer posso imaginar, na verdade já não te conheço bem, e como seria isso possível depois de tantos anos de separação?» (Página 12)

«Talvez ainda venha a ver todos os meus irmãos felizes, em todo o caso, gostaria de te ver alegre.» (Página 12)

«O senhor desiludiu-me, não ponha essa cara de espanto, não há nada a fazer, deixo hoje a sua livraria e peço-lhe que me pague o que me deve.» (Página 12)

«Do escritório ao lado, cinco cabeças lado a lado de empregados e ajudantes observavam e escutavam a cena.» (Página 13)

«Depois procuramos um lugarzinho fresco na orla da floresta, onde os olhos, enquanto estamos assim deitados, têm diante de si uma imagem fabulosa, onde os sentidos repousam naturalmente e onde os pensamentos podem pensar a seu bel-prazer.» (Página 15)

«Conhecia gente de trato agradável, escrevia com ligeireza e sem cansaço o dia inteiro, fazia contas, anotava o que lhe ditavam, com grande destreza aliás, comportava-se lindamente para sua própria surpresa, o que levou a que o seu superior se interessasse vivamente por ele, bebia todas as tardes a sua chávena de chá e, enquanto escrevia, olhava para a janela clara e arejada e sonhava.» (Página 15)

Constato, alarmado, que comprei mais dois títulos de Robert Walser (O Ajudante e Jakob von Gunten), também da mesma editora, e corro a ver quem traduziu. Confirmo o pior cenário: o tradutor foi o mesmo. Lidos os primeiros parágrafos, lá está a marca inconfundível:

«Esperou ainda um momento, como se reflectisse sobre alguma coisa, sem dúvida bastante irrelevante, depois premiu o botão da campainha eléctrica e chegou alguém para lhe abrir a porta, a criada ao que tudo indicava.» (O Ajudante, logo no primeiro parágrafo)

«Aprende-se muito pouco aqui, há falta de professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, nunca seremos ninguém, por outras palavras, nas nossas vidas futuras seremos apenas coisas muito pequenas e subalternas.» (Jakob von Gunten, logo a abrir)

Parecem-me, contudo, um pouco melhor traduzidos, ou melhor revistos, que o revisor foi outro e eu não tenho a certeza se o problema foi da tradução ou da revisão. Numa coisa, porém, tenho a certeza: vou retomar a versão inglesa d’Os Irmãos Tanner, e não lerei os restantes na tradução portuguesa. Além de me considerar lesado em cinquenta e tal euros, lamento, sobretudo, pelo escritor, que obviamente não merecia tanta mediocridade.

10 de outubro de 2011

OS ABRANTES. Nunca prestei grande atenção à polémica dos Abrantes, muito menos aos Abrantes propriamente ditos. Mas não deixa de ser engraçado constatar-se que os mais aguerridos activistas anti-Abrantes estão hoje como os Abrantes, senão pior. Como costumava dizer um deles, que por via de um lugarzinho entretanto arranjado passou do azedume à fidelidade canina, estão bem uns para os outros.
TOMEM NOTA. Os políticos profissionais «não têm actividade profissional que não seja a política». Sendo a política, e só a política, a sua actividade profissional, os políticos profissionais «precisam desesperadamente de não ser despedidos». E para não serem despedidos «precisam que o patrão, o aparelho partidário, ou uma personalidade que os apadrinha, nunca os deixe cair». Por isso se tornam especialistas a «manobrar o sistema de apoios e alianças necessários» para «irem a deputados», «vereadores ou assessores de qualquer coisa», e «têm de estar sempre de bem com os que lhes dão os lugares». Como é evidente, não podem, por isso, «dar-se ao luxo de terem opiniões próprias», nem terem a «liberdade fundamental» que é dizer «não». Eis, em resumo, o que disse Pacheco Pereira na última Sábado, e em que vale a pena meditar.