18 de junho de 2015
POR CAUSA DAS TOSSES. Talvez haja algum exagero, mas Keith Jarrett não se livra da fama de ter uma relação problemática com o público. Tive ocasião de o comprovar no último concerto que vi dele, de que aqui já falei. O primeiro tema da noite terminou com um espectador a tossir mesmo em cima da última nota, que provocou uma reacção intempestiva de Jarrett, que não conseguiu conter a irritação, embora temperada com ironia. Levantou-se de imediato, foi ao microfone e disse, mais coisa, menos coisa, que há pessoas que têm uma pontaria de tal modo afinada que conseguem tossir em momentos cruciais, como foi o caso. Como pouco depois se comprovou, a irritação já vinha de trás. Como estava um dia péssimo (as ruas de Nova Iorque estavam cobertas de neve e escorregava-se por todo o lado), houve quem se atrasasse, como se notou durante a meia hora de atraso com que Jarrett decidiu, e bem, iniciar o concerto. Irritação que o levaria a dizer que os atrasados lhe mereciam um enorme respeito, pois alguns tinham feito três e mais horas de automóvel debaixo de uma tempestade para ali estar — uma alusão à pateada com que os impacientes espectadores o brindaram antes do concerto, reclamando o seu início. Mas houve mais: cavalgando a onda, falou da sua lendária má relação com o público, e apontou para o piano onde acabava de tocar um tema complexíssimo (como, aliás, todos os que tocou naquela noite) para dizer que sem o público não o teria conseguido. Lembrei-me deste episódio enquanto ouço Alfred Brendel tocar o Adagio Un Poco Mosso do Concerto para Piano #5 de Beethoven (que já ouvi dezenas de vezes e a que, por uma razão ou outra, volto sempre), onde as tosses são uma autêntica praga, e provavelmente evitáveis. É conhecido o feitio de Jarrett, que se recusa a tocar enquanto o público não estiver em completo silêncio. (Há notícias de concertos em que se recusou a tocar por esse motivo, entre os quais um concerto em Lisboa em 1981.) Como alcançou um estatuto que lhe permite dar-se a esse luxo, falo-o, e eu acho muitíssimo bem. Até porque o barulho não perturba, apenas, o concertista, mas também o público que vai lá para ouvir. E eu, confesso, detesto ser perturbado, sobretudo por barulhos facilmente evitáveis. Anuncia-se, já depois destas linhas, o fim do trio (Jarrett, Peacock, DeJohnette). Dada a idade dos seus membros, é um fim anunciado. A confirmar-se, tive o privilégio de assistir ao último concerto, de que aqui dei conta. Ficam as memórias, as gravações, a música. A grande música.