23 de dezembro de 2020

TÃO BOM COMO LE CARRÉ. O episódio contado por Alexey Navalny, líder da oposição russa que há muito denuncia a corrupção na administração Putin, e que por esse motivo as secretas locais o terão tentado matar, obviamente a mando de Putin, valia o melhor Le Carré, de quem li sete romances e um livro de memórias (O Túnel de Pombos). David John Moore Cornwell, que adoptou o pseudónimo literário Le Carré quando ainda era agente dos serviços secretos britânicos, faleceu a semana passada, aos 89 anos, vítima de pneumonia; já Navalny, 44 anos, escapou, por milagre, em Agosto passado, a uma dezena de assassinos que o seguia há três anos e continua a recuperar algures na Alemanha do envenenamento de que foi vítima. Se o primeiro já estava no panteão da literatura, o segundo passou a destacar-se na já longa lista de vítimas do ditador russo — não por morrer, mas pela proeza de pôr os seus assassinos a revelar o plano, falhado, de o matar. O que Le Carré não faria com um episódio destes.

13 de dezembro de 2020

VALSINHA DOS COBARDES. Num esforço final para subverter o resultado das presidenciais americanas de 3 de Novembro, o procurador-geral do Texas, a que se juntaram 17 procuradores de outros tantos estados, 126 congressistas eleitos pelo Partido Republicano e o próprio Presidente Trump, pediu ao Supremo Tribunal que anulasse milhões de votos legítimos nos estados da Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, pedido que a ser bem-sucedido roubaria a vitória de Biden. Tiveram, porém, um revés: como em todos os processos anteriores movidos contra estes e outros estados, que os tribunais rejeitaram por falta de evidências, também este não apresentou evidências de irregularidades. A ser verdade que o procurador do Texas, a contas com a justiça, se prestou a esse serviço na esperança de um perdão presidencial, é da natureza humana querer salvar a pele. Mas que 18 estados e mais de uma centena de congressistas quisessem roubar a eleição «mais segura de sempre», no dizer da agência governamental responsável pela cibersegurança, diz muito onde a democracia chegou. Felizmente que as instituições, muito abanadas nos últimos quatro anos, se mantêm sólidas. Como se previa, o Supremo fez o que havia a fazer: rejeitou o pedido, porque sem ovos não se fazem omeletes. Foi mais uma derrota para Trump, talvez a maior de todas a seguir às eleições. Tendo em conta a natureza do sujeito, que jamais terá assumido uma derrota, será mais uma que não aceitará como tal. E teve ele, depois de quatro anos em que ultrapassou as piores previsões, 74 milhões de votos nas presidenciais em que disputava a reeleição. Desde que sei alguma coisa sobre a natureza humana que deixei de ter ilusões sobre ela, mas nunca pensei que me decepcionasse tanto.

3 de dezembro de 2020

DECLÍNIO E QUEDA(*). Que o Presidente Trump reclame ter sido vítima de fraude eleitoral, antes e depois das eleições, sem apresentar uma só evidência, seria mais uma mentira a juntar às milhares com que já nos brindou não fosse grave, demasiado grave. Mas que o advogado Giuliani se apresente nos tribunais alegando a mesmíssima fraude, de novo sem uma só evidência, nem para anedota serve. Como pode um advogado experiente, pago a peso de ouro, apresentar-se nos tribunais implorando que estes condenem alegadas fraudes sem nada que o demonstre, a ponto de ser humilhado pelos juízes? Só quem não está bom da cabeça, ou tem outro objectivo em mente. O Times de Nova Iorque revelou que estará em cima da mesa um perdão presidencial para Giuliani, embora o próprio desminta. Faz todo o sentido. Mas é preciso ver que um perdão presidencial, a concretizar-se, só contempla crimes federais, e Giuliani tem contas a ajustar com o estado de Nova Iorque (pelo menos). O «mayor da América», como ficou conhecido depois do 11 de Setembro de 2001, vai para a História com a imagem de um cadáver em decomposição que se viu na patética conferência de imprensa onde tentou demonstrar o indemonstrável. Assenta-lhe bem o retrato que fez por merecer. 
(*) Título da tradução portuguesa de Decline and Fall (Relógio D'Água), de Evelyn Waugh