31 de agosto de 2009
28 de agosto de 2009
VERDADES INCONVENIENTES. Tortura? Somos, todos, contra. Em circunstância alguma se deve aceitar a tortura, gostamos de dizer, mesmo em casos em que ela possa evitar males maiores. Da Esquerda à Direita, passando pelo meio e pelos extremos, não há, sobre a matéria, o mais leve «mas». Isto, claro, em teoria. Na prática, se percebermos que a tortura pode evitar que o mundo nos caia em cima, somos mais realistas, e se preciso for fazemos de conta que nunca ouvimos falar dela. Escrevi que Cheney tinha razão quando disse que se devia divulgar tudo quando se divulgou a tortura da secreta americana, e o tudo incluía o que a tortura terá evitado. Escrevi, e mantenho. Não por defender a tortura ou que os fins justificam os meios, embora, por vezes, justifiquem, por mais que me custe admiti-lo. É que eu estou convencido de que o pior que se pode fazer é divulgar o que convém, e esconder o que não convém. Os factos são infinitamente mais importantes que a opinião que deles se tenha, e só eles permitem que cada um julgue por si. Esconder parte da verdade apenas serve para aumentar a simpatia por essa parte que se esconde.
27 de agosto de 2009
SUSPEITAS CONFIRMAM-SE. Cunha Rodrigues considera que «o cidadão começa a duvidar de que seja possível confiar numa Justiça que parece desfazer, de noite, o trabalho que produz de dia», que os tribunais se converteram «em causa de ruído e de perplexidade», e que «a lentidão da Justiça interessa normalmente a uma das partes». Cunha Rodrigues, recorde-se, foi procurador-geral da República durante 16 anos. Sabe, portanto, do que fala. E nada melhor do que alguém que sabe do que fala para credibilizar o que se diz por aí, que os menos informados tomarão por demagogia.
26 de agosto de 2009
TÃO SIMPLES COMO ISTO. «Na esmagadora maioria dos casos não é precisa lei nenhuma para colocar ética na política: basta que quem manda, quem decida, tenha a coragem de aplicar estes princípios, estes valores», disse o ex-líder social-democrata Marques Mendes.
PORCA MISÉRIA. Vi, a espaços, o Fiorentina-Sporting, e custou-me a crer naquilo que via. Como é possível que duas equipas com os pergaminhos do Sporting e da Fiorentina pratiquem um futebol tão miserável?
24 de agosto de 2009
LI E GOSTEI (5)
Einstein finishes a lecture at the university in Prague (…) and is getting ready to leave the hall. “Herr Professor sir, take your umbrella, it's raining out!” Einstein gazes thoughtfully at his umbrella where it stands in a corner of the room, and answers the student: “You know, my good friend, I often forget my umbrella, so I have two of them. One is at the house, the other I keep at the university. Of course I could take it now since, as you say quite correctly, it is raining. But then I would end up with two umbrellas at the house and none here.” And with these words he goes out into the rain.
Milan Kundera, The Curtain
Einstein finishes a lecture at the university in Prague (…) and is getting ready to leave the hall. “Herr Professor sir, take your umbrella, it's raining out!” Einstein gazes thoughtfully at his umbrella where it stands in a corner of the room, and answers the student: “You know, my good friend, I often forget my umbrella, so I have two of them. One is at the house, the other I keep at the university. Of course I could take it now since, as you say quite correctly, it is raining. But then I would end up with two umbrellas at the house and none here.” And with these words he goes out into the rain.
Milan Kundera, The Curtain
21 de agosto de 2009
SRA. MINISTRA DA SAÚDE. Li que os bombeiros da Régua se desinfectavam com vinho do Porto aquando da «pneumónica» sempre que tinham que socorrer algum doente infectado com a «gripe espanhola», e que nenhum dos «soldados da paz» foi vítima de tal coisa. «O primeiro gole seria para bochechar e deitar fora e o restante conteúdo do cálice (bem grande, por sinal) era para ingerir», recorda um bombeiro da época. Não sei onde acaba a verdade e começa a lenda, muito menos se o vinho do Porto produziu o efeito que lhe atribuem. O que sei é que já reforcei a minha dose diária após o jantar. Não só para me prevenir contra a Gripe A, mas também para evitar que ela me impeça de o beber.
OS MENOS MAUS. António Preto é «uma ferida em aberto» nas listas do PSD, escreveu Pacheco Pereira no blogue oficioso do PSD. Escreveu mais: que não concordou com algumas decisões, que houve «erros graves», e que teve de engolir alguns sapos. Tudo isto porque, segundo ele, é preciso vencer Sócrates e companhia, e para isso vale tudo, incluindo engolir sapos, cometer «erros graves», e o mais que for preciso. Resumindo o «raciocínio» de Pacheco Pereira, não é preciso ser melhor do que eles. O que importa é vencê-los, custe o que custar. Nada que um eleitor descomprometido e mediamente informado não esteja farto de saber, valha a verdade. O problema é se os eleitores que costumam votar nos menos maus se fartam deles e começam a votar nos piores.
AO CUIDADO DO PROVEDOR. O DN entrevistou Ana Gomes na condição de candidata à Câmara de Sintra mas «esqueceu-se» de lhe perguntar o que achava da directiva do PS que proíbe as duplas candidaturas, e se considerava que a medida a poderá prejudicar. Ou será que as perguntas não eram oportunas?
20 de agosto de 2009
BLOGUES. Nada contra os blogues que se fazem e desfazem para apoiar uma causa ou um partido político, ou para zurzir numa causa ou num partido político. Afinal, a blogosfera distingue-se por ser um espaço de liberdade, e que assim continue a ser. Mas devo dizer que estou farto dos saltimbancos que ora escrevem aqui, ora escrevem ali, ora escrevem acolá. Aliás, não vislumbro que mais-valia isso traz, e a quem. Salvo honrosas excepções, é de puro alinhamento que se trata, uns por razões evidentes, outros nem tanto. Pior: por regra, as contribuições apenas reforçam a componente politiqueira, e politiquice já temos de sobra.
18 de agosto de 2009
SOARES MENTE. Mário Soares não sabe do que fala quando fala do seguro de saúde nos EUA. Não é verdade que «os mais pobres não chegam sequer a entrar nos hospitais» por não terem seguro, como diz no DN. Nenhum hospital pode negar os cuidados de saúde a quem quer que seja, tenha seguro, ou não. A diferença de tratamento entre quem tem e não tem seguro é que varia, e muito, pelas razões que se adivinham. Mas isso é outra conversa.
LI E GOSTEI (4)
A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização distante. Desde os primeiros tempos da colônia, as mais imponentes expedições e solenes visitas pastorais rumavam de preferência às suas plagas desconhecidas. Para lá os mais veneráveis bispos, os mais garbosos capitães-generais, os mais lúcidos cientistas. E do amanho do solo que se tentou afeiçoar a exóticas especiarias, à cultura do aborígene que se procurou erguer aos mais altos destinos, a Metrópole longínqua demasiara-se em desvelos à terra que sobre todas lhe compensaria o perdimento da Índia portentosa.
Esforços vãos. As partidas demarcadoras, as missões apostólicas, as viagens governamentais, com as suas frotas de centenares de canoas, e os seus astrônomos comissários apercebidos de luxuosos instrumentos, e os seus prelados, e os seus guerreiros, chegavam, intermitentemente, àqueles rincões solitários, e armavam rapidamente no altiplano das “barreiras” as tendas suntuosas da civilização em viagem. Regulavam as culturas; puliam as gentes; aformoseavam a terra.
Prosseguiam a outros pontos, ou voltavam — e as malocas, num momento transfiguradas, decaíam de chofre, volvendo à bruteza original.
Euclides da Cunha, À Margem da História
A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização distante. Desde os primeiros tempos da colônia, as mais imponentes expedições e solenes visitas pastorais rumavam de preferência às suas plagas desconhecidas. Para lá os mais veneráveis bispos, os mais garbosos capitães-generais, os mais lúcidos cientistas. E do amanho do solo que se tentou afeiçoar a exóticas especiarias, à cultura do aborígene que se procurou erguer aos mais altos destinos, a Metrópole longínqua demasiara-se em desvelos à terra que sobre todas lhe compensaria o perdimento da Índia portentosa.
Esforços vãos. As partidas demarcadoras, as missões apostólicas, as viagens governamentais, com as suas frotas de centenares de canoas, e os seus astrônomos comissários apercebidos de luxuosos instrumentos, e os seus prelados, e os seus guerreiros, chegavam, intermitentemente, àqueles rincões solitários, e armavam rapidamente no altiplano das “barreiras” as tendas suntuosas da civilização em viagem. Regulavam as culturas; puliam as gentes; aformoseavam a terra.
Prosseguiam a outros pontos, ou voltavam — e as malocas, num momento transfiguradas, decaíam de chofre, volvendo à bruteza original.
Euclides da Cunha, À Margem da História
14 de agosto de 2009
NO MELHOR PANO CAI A NÓDOA. «Tolerar (e desculpar) um cavalheiro [Pedro Passos Coelho] que pública e constantemente se ofereceu como substituto dela [Manuela Ferreira Leite] era com certeza a melhor maneira de promover a crónica indisciplina do PSD», escreveu Vasco Pulido Valente no Público de hoje. Quer isto dizer que os críticos (e potenciais adversários) da actual liderança social-democrata não devem ser tolerados (ou desculpados)? Que a crítica a quem manda é um acto de indisciplina? Como não me parece haver margem para outras leituras, quer dizer isso mesmo. Assim sendo, o mínimo que posso dizer é que foi uma surpresa. Uma desagradável surpresa, para ser mais preciso.
13 de agosto de 2009
UM ABSURDO. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a que alguns já chamam a ASAE dos media, tornou-se um caso em que todos a atacam, e ninguém a defende. De facto, a directiva agora imposta (a ERC deliberou que os media devem, em período de eleições, suspender os opinion makers que são candidatos ou conceder espaços de opinião idênticos a todas as candidaturas) não tem pés, nem cabeça. É, quando muito, uma medida bem-intencionada, mas impossível de concretizar caso se queira pôr em prática — e convenhamos que de uma entidade reguladora dos media não se espera que se fique pelas boas intenções. Como escreveu Nuno Pacheco, a directiva implicaria a cedência de doze páginas do Público caso o jornal onde trabalha acedesse às pretensões da ERC, um perfeito absurdo. Estarão lembrados do posicionamento que os principais jornais norte-americanos tiveram face à candidatura de George W. Bush ao segundo mandato, mas eu recordo na mesma: os principais jornais (The New York Times, Washington Post e Boston Globe, entre outros) apoiaram a candidatura de John Kerry (adversário de Bush), e nem por isso evitaram que Bush fosse reeleito. Este simples facto (os media nem sempre têm o poder que lhes atribuem, nomeadamente poder eleitoral) devia servir para a ERC ponderar melhor as decisões que toma, e os conselhos que dá.
LI E GOSTEI (3)
Uma manhã de Inverno, passeava com Arrieta pelo Jardin du Luxembourg quando numa alameda secundária vislumbrámos um pássaro negro e solitário, quase imóvel, a ler o jornal. Era Samuel Beckett. Vestido rigorosamente de preto dos pés à cabeça, estava ali numa cadeira, muito quieto, parecia desesperado, metia medo. E até quase parecia mentira que fosse ele, que fosse Beckett. Nunca tinha previsto que pudesse encontrá-lo. Sabia que não era um clássico morto, mas sim alguém que vivia em Paris, mas imaginara-o sempre como uma escura presença que sobrevoava a cidade, nunca como alguém que encontramos a ler desesperado um jornal num velho parque frio e solitário. De vez em quando mudava de página, e fazia-o com uma espécie de nojo tão grande e uma energia tão intensa, que se o Jardin du Luxembourg inteiro tivesse tremido não nos teria surpreendido nada. Quando chegou à última página, ficou entre absorto e ausente. Metia mais medo do que antes. «É o único que teve a coragem de mostrar que o nosso desespero é tão grande, que nem palavras temos para o exprimir», disse Arrieta.
Enrique Vila-Matas, Paris nunca se acaba
Uma manhã de Inverno, passeava com Arrieta pelo Jardin du Luxembourg quando numa alameda secundária vislumbrámos um pássaro negro e solitário, quase imóvel, a ler o jornal. Era Samuel Beckett. Vestido rigorosamente de preto dos pés à cabeça, estava ali numa cadeira, muito quieto, parecia desesperado, metia medo. E até quase parecia mentira que fosse ele, que fosse Beckett. Nunca tinha previsto que pudesse encontrá-lo. Sabia que não era um clássico morto, mas sim alguém que vivia em Paris, mas imaginara-o sempre como uma escura presença que sobrevoava a cidade, nunca como alguém que encontramos a ler desesperado um jornal num velho parque frio e solitário. De vez em quando mudava de página, e fazia-o com uma espécie de nojo tão grande e uma energia tão intensa, que se o Jardin du Luxembourg inteiro tivesse tremido não nos teria surpreendido nada. Quando chegou à última página, ficou entre absorto e ausente. Metia mais medo do que antes. «É o único que teve a coragem de mostrar que o nosso desespero é tão grande, que nem palavras temos para o exprimir», disse Arrieta.
Enrique Vila-Matas, Paris nunca se acaba
11 de agosto de 2009
TÃO MAUS QUE NÓS SOMOS. Afinal, não é só Portugal que tem uma justiça incompetente. Os ingleses, pelos vistos, são tão maus como nós. Se puséssemos os olhos no que fazem os ingleses, diz Carlos Anjos, talvez não falássemos tão mal da justiça que temos. Como não é assim, como falar mal do que é nosso nos está na massa do sangue, passamos a vida a dizer mal da polícia, dos tribunais, da justiça. Infelizmente não ocorreu ao investigador da PJ um pequeno detalhe: os problemas dos ingleses são dos ingleses, e só a eles afectam. Já os nossos são nossos, e afectam-nos a nós. Nivelar por baixo, como fez Carlos Anjos, não explica nada, não adianta um milímetro, não muda coisa nenhuma. Contentarmo-nos em ser tão maus como os outros é meio caminho andado para sermos pior do que os outros.
10 de agosto de 2009
31 da ARMADA. A avaliar pelos comentários que vi por aí, o episódio protagonizado pelo 31 da Armada foi uma tragédia, no mínimo uma brincadeira de mau gosto. Pois eu, não sendo monárquico, devo dizer que achei graça àquilo, apesar de admitir que estejamos perante um caso de desrespeito aos símbolos nacionais punível por lei.
7 de agosto de 2009
SARAMAGO. «Que atire a primeira pedra quem nunca teve nódoas de emigração a manchar-lhe a árvore genealógica», escreveu, há dias, José Saramago. Quer isto dizer que a emigração constitui, para ele, uma nódoa no currículo de uma pessoa de bem? A avaliar por aquilo que disse, não há dúvida. De facto, o que disse Saramago sobre a emigração não se presta a duas leituras, pelo que o ilustre quis mesmo dizer o que disse. Quem me lê sabe que não morro de amores por Saramago. Nem pelo personagem, nem pela obra. Mas não fiquei inteiramente convencido de que ele pensa, realmente, o que disse. O post de Saramago resultou de não ter pensado no que disse, sobretudo no alcance do que disse, e nem me parece caso para que se possa dizer que quem não pensa o que diz arrisca dizer o que pensa. Sinceramente, sem a mais leve ironia. Mas ficar-lhe-ia bem desfazer o equívoco.
LI E GOSTEI (2)
— Agora que acabou a Censura, como irão escrever os escritores?
— À parte o facto, altamente provável, de aparecerem escritores que a si próprios se ignoravam, os veteranos escreverão como dantes: mal, os que escreviam mal; bem, os que o faziam bem.
— Então, quanto a si, essa abolição poucas vantagens trouxe...
— Trouxe. Daqui por diante não haverá mais desculpas.
Alexandre O'Neill, Já cá não está quem falou
— Agora que acabou a Censura, como irão escrever os escritores?
— À parte o facto, altamente provável, de aparecerem escritores que a si próprios se ignoravam, os veteranos escreverão como dantes: mal, os que escreviam mal; bem, os que o faziam bem.
— Então, quanto a si, essa abolição poucas vantagens trouxe...
— Trouxe. Daqui por diante não haverá mais desculpas.
Alexandre O'Neill, Já cá não está quem falou
5 de agosto de 2009
A PURGA. Conheço mal Pedro Passos Coelho, mas a impressão que tenho dele não é das melhores. (Falo no plano político, que no plano pessoal, além de meu conterrâneo, nada mais sei dele, nem quero saber.) Parece-me, contudo, que Passos Coelho é um sério candidato à liderança do PSD, goste-se ou não do sujeito, seja bom, ou mau, para o PSD. Afastá-lo das listas de deputados, como acaba de fazer Manuela Ferreira Leite, parece-me, portanto, um erro. Diria mais: um erro monumental. O caso faz, obviamente, lembrar um certo partido político, onde essa prática é muito popular. Aliás, a exclusão de Miguel Relvas, braço-direito de Passos Coelho (Relvas foi indicado pela distrital de Santarém como cabeça de lista por esse mesmo distrito mas Manuela rejeitou), confirma que estamos diante uma purga, mas nem era preciso. De facto, como entender que um ex-candidato à liderança do PSD que conquistou 30% dos votos não seja candidato a deputado quando é essa a sua vontade e a vontade da distrital a que pertence? Mas há mais: há candidatos que são arguidos em processos judiciais, o que torna ainda mais difícil entender que os escolhidos sejam os que «reúnem as melhores condições para o combate», como diz Aguiar Branco. A exclusão de Passos Coelho e seus apoiantes não foi, como diz a direcção social-democrata, uma decisão «simplesmente política». Foi, antes, uma decisão de pequena política, um mero ajuste de contas.
PUTAS E SUBMISSAS. Desconheço a seriedade do movimento «Nem Putas nem Submissas», mas simpatizo com o nome. (Ler o resto no sítio do costume.)
4 de agosto de 2009
LI E GOSTEI (1)
Em Janeiro do ano em que se iria matar, Hemingway, um homem velho e frágil, com o cabelo todo branco, pálido, com os membros enfraquecidos mas aparentemente um pouco melhor das suas últimas crises, foi autorizado pelos médicos a regressar a Ketchum. O seu amigo Gary Cooper acabava de dizer que um homem feliz é aquele que durante o dia, devido ao seu trabalho, e à noite, devido ao seu cansaço, não tem tempo para pensar nas suas coisas. No entanto, Hemingway tinha esse tempo. Foi-lhe pedido que contribuísse com uma frase para um livro que ia ser entregue ao recém-investido presidente dos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy. Trabalhou todo o dia e não conseguiu a frase. «Já não sai», balbuciou ao seu amigo Georges Saviers. E chorou. Nunca mais voltou a escrever. Quando chegou a Primavera, dizem que nem a viu e que nem se apercebeu de que tinha chegado. Vestido sempre de preto, cabisbaixo, vivia num permanente estado de desespero. Alguns heróis dos seus livros, com a sua estóica resistência à adversidade, com a sua extraordinária elegância no sofrimento, iam passar à história e ficar, pelo menos durante algum tempo, na memória da humanidade. Mas ele estava desesperado e a sua estóica resistência soçobrava. E não podia fazer muito. Quando se está mergulhado na adversidade, já é tarde para se ser cauto. Mudou da armaria para um armário uma velha espingarda de caça e dois cartuchos. A mulher descobriu e avisou o médico e o médico pediu a Hemingway que devolvesse a espingarda à armaria. Tiveram de voltar a interná-lo, mas antes de entrar no carro que o conduziria ao avião que o ia levar ao hospital precipitou-se para a armaria e pôs a arma carregada na garganta. «Shanghaied», disse. Foi apenas uma antecipação do que acabaria por fazer em Julho.
Enrique Vila-Matas, Paris nunca se acaba
Em Janeiro do ano em que se iria matar, Hemingway, um homem velho e frágil, com o cabelo todo branco, pálido, com os membros enfraquecidos mas aparentemente um pouco melhor das suas últimas crises, foi autorizado pelos médicos a regressar a Ketchum. O seu amigo Gary Cooper acabava de dizer que um homem feliz é aquele que durante o dia, devido ao seu trabalho, e à noite, devido ao seu cansaço, não tem tempo para pensar nas suas coisas. No entanto, Hemingway tinha esse tempo. Foi-lhe pedido que contribuísse com uma frase para um livro que ia ser entregue ao recém-investido presidente dos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy. Trabalhou todo o dia e não conseguiu a frase. «Já não sai», balbuciou ao seu amigo Georges Saviers. E chorou. Nunca mais voltou a escrever. Quando chegou a Primavera, dizem que nem a viu e que nem se apercebeu de que tinha chegado. Vestido sempre de preto, cabisbaixo, vivia num permanente estado de desespero. Alguns heróis dos seus livros, com a sua estóica resistência à adversidade, com a sua extraordinária elegância no sofrimento, iam passar à história e ficar, pelo menos durante algum tempo, na memória da humanidade. Mas ele estava desesperado e a sua estóica resistência soçobrava. E não podia fazer muito. Quando se está mergulhado na adversidade, já é tarde para se ser cauto. Mudou da armaria para um armário uma velha espingarda de caça e dois cartuchos. A mulher descobriu e avisou o médico e o médico pediu a Hemingway que devolvesse a espingarda à armaria. Tiveram de voltar a interná-lo, mas antes de entrar no carro que o conduziria ao avião que o ia levar ao hospital precipitou-se para a armaria e pôs a arma carregada na garganta. «Shanghaied», disse. Foi apenas uma antecipação do que acabaria por fazer em Julho.
Enrique Vila-Matas, Paris nunca se acaba
3 de agosto de 2009
DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS. Muito comovente a prosa que Moita Flores deu à estampa no Correio da Manhã a propósito do «caso» Fátima Felgueiras, especialmente a parte onde ele diz que os media se fartaram de condenar a autarca por crimes que o tribunal agora diz não ter cometido. Comovente porque o cavalheiro não aplicou o mesmo princípio (a presunção da inocência) aos pais de Madeleine McCann, sobre os quais se fartou de insinuar, no mesmo jornal, que eram mais que suspeitos de terem matado a própria filha, e com o agravante de não apresentar um único facto (repito: um único facto) que fundamentasse as suspeitas. O mais interessante é que Moita Flores foi agente da PJ, pelo que seria de esperar um pouco mais de comedimento. Isto, claro, partindo do princípio que o comedimento é um valor caro à PJ, embora raramente se note.
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