2 de outubro de 2009

LI E GOSTEI (6)

O que foi feito dos meus amigos e das coisas belas e desmesuradas por que todos nós perdemos e ganhámos a juventude? Olho em volta e resigno-me: os meus amigos cansaram-se e jazem agora em empregos rotineiros à espera da trombose ou do enfarte. Alguns passaram-se com armas e bagagens (e, naturalmente, proveito) para o lado do inimigo. Os melhores (mas que sei eu?) engordaram — para dizer a verdade, todos engordámos... — e tornaram-se cépticos e amargos, carregando a nossa memória comum como um pecado envergonhado. Muitos morreram em guerras sem sentido, ou tão só de tédio, de longo e insuportável tédio. Outros partiram para improváveis distantes lugares; um enlouqueceu (e esse foi, se calhar, o que, imóvel e cegamente, partiu para mais longe).

Manuel António Pina, Crónica 20 Anos Depois (Jornal de Notícias de 10/6/92) publicada no volume O Anacronista