29 de dezembro de 2006
«— Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?» Herberto Helder, Os passos em Volta
28 de dezembro de 2006
«(…) in Aracataca, where we lived, I'd never had the chance to see ice. And once the banana company commissioner received some frozen snapper. And I was struck by those red snappers that looked like rocks, so I asked my grandfather. And my grandpa, who always explained everything to me, said they looked like rocks because they were frozen. And I asked him what "frozen" meant, and he took me by the hand and took me to the commissioner and asked them to open up a box of frozen snapper, and I got to discover ice. And of course, when I had to decide between dromedary and ice, I stayed with ice because, from a literary standpoint, it was much more suggestive. What's incredible now is that all of One Hundred Years of Solitude started from that all-so-simple image.» Gabriel García Márquez, entrevista a Ernesto González Bermejo (1971)
27 de dezembro de 2006
O presidente do FC Porto passou a noite de Natal numa instituição de solidariedade social com os sem-abrigo, com quem terá dividido o bacalhau. A responsável pela instituição, para quem Pinto da Costa «surpreendeu toda a gente» ao permanecer no local durante algumas horas e por ter estado «muito tempo a conversar» com os sem-abrigo, não teve a mais leve dúvida acerca do gesto do dirigente desportivo: «Ficámos todos surpreendidos. Nós sabemos que ele [Pinto da Costa] tem aquele lado humano, mas, mesmo eu, que o conheço tão bem, fiquei surpreendida quando ele disse que queria ficar», disse à Lusa. Eça de Queirós escreveu que há quem dê dinheiro aos pobres para que a caridade venha no jornal, e que para «alcançar o louvor» do dito «os homens praticam todas as acções — mesmo as boas». Não será o caso de Pinto da Costa. Mas quando a esmola é grande, o pobre desconfia.
26 de dezembro de 2006
22 de dezembro de 2006
Ana Gomes insiste na ideia de que Portugal serviu de escala a aviões de transporte ilegal de prisioneiros rumo a Guantánamo. Pior: segundo ela, o actual Governo terá ocultado informações (ou prestado informações erradas) sobre o caso à comissão a que pertence. E com base em que factos fez Ana Gomes as acusações? Até ver, com base em nada e coisa nenhuma. Como os dados que lhe forneceram não se encaixam na conclusão previamente tirada, os dados só podem estar errados — ou, então, alguém está a mentir. Imagine-se o que seria caso o actual Governo não fosse do partido a que pertence, e nem seria preciso o Governo Santana Lopes. Razão teve o PS em despachá-la para o Parlamento Europeu, embora não se tenha livrado de embaraços.
20 de dezembro de 2006
Que Miguel Sousa Tavares ache o Apito Dourado um embuste ou uma mera guerra entre clubes, cada um acredita no que quer. Que a única coisa que lhe ocorra é desdenhar de Carolina Salgado e resumir o que ela disse no livro a dor de corno, é lá com ele. Mas que chegue a ponto de ridicularizar o espancamento de um ex-vereador, parece-me que nem os Super Dragões se atreveriam a tanto.
18 de dezembro de 2006
A decisão da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) sobre o caso Cintra Torres/RTP foi, no mínimo, infeliz. Das peripécias que se seguiram à divulgação da decisão, então, nem se fala. Mas o caso propriamente dito — a questão de saber se é verdade que o Governo fez pressão junto da televisão pública por causa dos incêndios, como afirmou o crítico do Público — não merecia passar para segundo plano. Houve, ou não, ingerência governamental na RTP? A coisa vai morrer assim, com a palavra de um contra a palavra de outros? Bem sei que a ERC não encontrou «indícios» de que tenha havido ingerência governamental, mas isso não garante que não tenha havido. Como não garante que tenha havido ingerência governamental o simples facto de Cintra Torres o escrever. Pode ser que quando a poeira assentar e for conhecido o desenlace dos processos judiciais anunciados por alguns jornalistas da RTP ao colunista se conheçam novos detalhes. Sim, é bom não perder de vista que não é só o Governo que está em causa, como chega a parecer pelo que se lê por aí. Há jornalistas acusados por Cintra Torres de terem sido alvo de pressões (e, supõe-se, de a elas terem cedido) que importa saber se são culpados ou não.
15 de dezembro de 2006
A avaliar por aquilo que vem nos jornais, e que ainda não vi desmentido, a Judiciária do Porto não esteve à altura do Apito Dourado. Isto para dizer o mínimo dos mínimos e não correr o risco de estar a ser injusto para com aquela polícia — ou de me mandarem prender. É que os indícios — fugas de informação, denúncias de que um subinspector terá sido obrigado a aposentar-se para evitar males maiores — demonstram que há mais que motivos para dúvidas, e não deve ser por acaso que já se fala que o Apito vai mudar para a delegação de Lisboa. Assim sendo, sobra, para já, uma evidência: a Judiciária do Porto caiu no descrédito. Pior: é um perigo.
14 de dezembro de 2006
Parece que o procurador-geral da República ficou «estupefacto» quando soube que o juiz Carlos Teixeira foi perseguido por causa do Apito Dourado. «Quando um magistrado do Ministério Público é perseguido, o próprio Estado fica em causa», disse Pinto Monteiro ao Correio da Manhã. De facto, assim é. E ainda mais preocupante se torna quando se constata que o procurador-geral da República só tomou conhecimento do caso há meia dúzia de dias, e através dos jornais.
13 de dezembro de 2006
Miguel Sousa Tavares diz que o livro de Carolina Salgado «é um dejecto de ressabiamentos e vinganças pessoais», e que o conteúdo do dito apenas ilustra «o carácter da senhora». Sobre o principal visado no livro (Pinto da Costa) e a natureza das acusações que lhe são feitas, o jornalista limita-se a dizer que são matéria que «a justiça terá de apurar», e que só aos protagonistas compete responder. Ora, custa-me a digerir a indignação de Miguel Sousa Tavares contra a dona Carolina (que se limitou a acusar Pinto da Costa de crimes vários e a dizer-se cúmplice de alguns deles) e que só tenha criticado ao de leve Pinto da Costa — e, apenas, pelo facto de este ter promovido a senhora a «uma espécie de primeira dama do FC Porto». Sendo Miguel Sousa Tavares adepto confesso do clube presidido por Pinto da Costa, será que os argumentos aduzidos na crónica do jornal A Bola enfermam, apenas, de clubite aguda? É que arrear na dona Carolina, mesmo por todas as razões que possa haver (e parece que há), não custa nada, e a forma como Sousa Tavares o fez até deixou a ideia de que tem um problema com as origens (humildes, suponho) da senhora. Mas, pelos vistos, já custa mais arrear em quem tem outro poder de fogo, mesmo que haja fortes motivos para isso e não sobeje ao visado argumentos para se defender.
11 de dezembro de 2006
As revelações dos últimos dias a propósito dos futebóis colocam Portugal ao nível de uma república das bananas. É provável que nem tudo o que se diz seja como se diz, mas adivinha-se que há mais episódios por contar — e que a verdade seja ainda pior. Aliás, duvido que haja um só português que se tenha surpreendido com os últimos acontecimentos, pois há anos que andamos a ouvir acusações iguais ou piores — e ninguém acredita que, no caso em apreço, haja fumo sem fogo. Mas o pior nem é isso: o pior é o papel dos agentes da Justiça, que vão da aselhice à impotência, da incompetência à promiscuidade. Muito mais do que razões para não acreditarmos nela, a Justiça tem vindo a dar-nos motivos para termos medo dela.
7 de dezembro de 2006
A invasão do Iraque pela tropa americana foi decidida porque havia indícios credíveis (repito: indícios credíveis) de que o regime de Bagdade possuía armas de destruição maciça. Lembro-me perfeitamente das críticas de alguns políticos e das reservas de alguns países quanto à oportunidade de invadir o Iraque, mas não me lembro de ninguém pôr em causa a existência desses indícios. Isto para começar. Depois, a invasão não foi decidida pelo presidente Bush, que não tem poderes para isso. A decisão foi tomada pelo Congresso, com os votos dos Republicanos e dos Democratas, o que levanta a questão de saber se Bush, esse idiota, também enganou os Democratas — além dos demais países que se juntaram aos americanos na coligação, entre os quais aquele de que é primeiro-ministro Tony Blair, esse outro idiota. Em matéria de mentiras, estamos, portanto, conversados. Mas quando se procura combater estas «mentiras» com inverdades, passa a ser demais. E mais chocante se torna quando elas vêm de quem tem responsabilidades nos jornais que se apresentam como de referência, de quem se esperaria que se movesse pelo rigor dos factos e tudo fizesse para evitar a mentira. Falo de António José Teixeira, director do DN, mas podia ser doutros. É que dizer-se que Bush «mentiu» sobre a existência de armas de destruição maciça e que o presidente americano «sabia que estava a mentir» é faltar à verdade, pois isso é uma suposição e não um facto. Dir-me-ão que um editorial é, por regra, um artigo de opinião, e eu concordo. Acontece que a afirmação em causa não aparece no texto como sendo uma opinião, no caso uma opinião do director do DN, mas como um facto. E ninguém acredita que um jornalista tão experimentado como António José Teixeira tenha cometido um erro destes por ingenuidade ou descuido.
6 de dezembro de 2006
Qual é o problema de os árbitros de futebol serem obrigados a declarar os rendimentos? Porque são, como diz Paulo Costa, «os únicos agentes do universo do futebol a apresentar uma declaração desse género»? E daí? Quem não deve não teme, não é? O protesto contra a lei que os obriga a declarar o que ganham só podia, por isso, deixar a ideia de que têm algo a esconder, mesmo que assim não seja. Pela natureza da actividade que desenvolvem e pelas suspeitas de que são alvo, seria bom que os árbitros tomassem especiais cuidados e não se metessem em manobras que só os vão descredibilizar.
5 de dezembro de 2006
Se Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa acham realmente que devia haver julgamento do caso Camarate não teria sido necessário esperar mais um aniversário (e pela «confissão» do sr. Esteves) para o vir dizer. Uma vergonha para a democracia que o caso tenha acabado da forma como acabou, a haver, é o facto de estes senhores (e todos os políticos em geral) terem levado anos a descobrir que «ninguém compreende que tudo esteja por esclarecer», e que só agora se tenham lembrado de pedir um julgamento.
Segundo António Vilarigues, «assiste-se a uma permanente e bem elaborada campanha (…) de branqueamento do regime de Salazar e Caetano» destinada a «reescrever a história de Portugal no século XX». O mais recente episódio desta campanha, acrescenta, é a criação de um museu em Santa Comba com o propósito de fazer «a propaganda do fascismo». Ora, a ser verdade que se pretende criar o museu, não se vê que isso legitime a ditadura de Salazar e Caetano e as patifarias do Estado Novo. Se o sr. Vilarigues está realmente preocupado com o «branqueamento do regime de Salazar e Caetano», parece-me que devia aplaudir iniciativas que visam dar a conhecer melhor tais figuras e suas práticas. Não é evitando falar do passado que se evitam futuros que ninguém quer.
1 de dezembro de 2006
Como bem notaram alguns, a deputada Luísa Mesquita parece ter descoberto a pólvora. Trinta e dois anos depois de ter aderido ao Partido Comunista e onze anos após desempenhar o cargo de deputada na Assembleia da República, a militante do PC descobriu que o partido a que pertence descarta sem cerimónias quem deixou de lhe interessar ou quem não pensa segundo a cartilha em vigor. Caso para perguntar: onde terá ela andado aquando dos casos João Amaral, Carlos Brito, Alfredo Barroso ou Carlos Sousa? Sim, porque não me lembro de a ver protestar, o que só pode significar que concordou, ou calou. De maneira que, agora, que a coisa lhe tocou pela porta, mais valia que não se queixasse.
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