30 de novembro de 2005
Sim, eu vi a entrevista de Mário Soares à RTP. Vi como Soares tentou impor as regras (e, de certa maneira, conseguiu), alegando que 30 minutos de entrevista era pouco tempo para estar a desperdiçá-lo com assuntos como o caso Manuel Alegre. Vi como se apresentou como o D. Sebastião, lembrando aos incautos que só avançou para as Presidenciais porque o país está numa enorme crise. Vi como se demarcou sem cerimónias do partido que o apoia e de que ainda há pouco foi número um, sublinhando que é um candidato independente. Vi como fugiu à questão da substituição do Procurador-Geral da República, embrulhando-se em subterfúgios que não convenceram ninguém. Vi que chamou provincianos aos que o acusaram de defender o diálogo com os terroristas, nomeadamente os terroristas da Al-Qaeda. Vi, finalmente, que é contra a globalização, apesar de ter dito que era a favor. Como Cavaco Silva, a quem acusa de não querer pronunciar-se sobre não sei que matérias, também Mário Soares só está interessado em falar sobre o que lhe interessa, não hesitando em desvalorizar o que lhe é incómodo. Quanto a Judite de Sousa, que ontem critiquei por causa da entrevista a Manuel Alegre, voltou a estar mal, desta vez por culpa do entrevistado. Mário Soares conduziu a conversa como quis e para onde quis.
«Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta no papel.» Faz hoje 70 anos que morreu Fernando Pessoa e vinte e tal que mudou a minha vida.
29 de novembro de 2005
Vi quase toda a entrevista de Manuel Alegre à RTP e voltou a irritar-me a postura de Judite de Sousa. A jornalista esteve demasiado interventiva e impaciente, cortando a palavra ao entrevistado sem que se percebesse porquê. Como já a conheço de outros carnavais, duvido que o critério se mantenha para os próximos entrevistados. Sobre Manuel Alegre, que se mostrou com uma serenidade invulgar, nada que já não tivesse dito e repetido. Tirando o apoio que em tempos terá dado a Soares caso Soares se apresentasse como candidato à Presidência da República, episódio que disse não se lembrar após longa hesitação, nada que me tenha ficado no ouvido.
Cavaco Silva a ajeitar o nó da gravata na capa da Sábado, procurando mostrar o «outro lado» do homem rígido que não tem dúvidas e raramente se engana, representa uma estratégia de marketing político de alcance duvidoso. Mais: a imagem soa-me inteiramente falsa. Pode ser impressão minha, mas está por demonstrar que rende votos tornar público o que deve ser do domínio privado — além de que quem pretende dar determinada imagem da sua vida privada arrisca-se a que se mostre o que não lhe convém.
28 de novembro de 2005
Depois de Margarida Rebelo Pinto (ver aqui), Clara Pinto Correia foi apanhada a plagiar-se a si própria. Segundo a Sábado, o último romance da bióloga-escritora está cheio de páginas copiadas de outro romance da bióloga-escritora. Chega a haver cinco páginas repetidas num só capítulo, adianta a revista. Confrontada com a evidência, Clara Pinto Correia diz tratar-se de «uma brincadeira» — e não vê qualquer problema nisso. Da outra vez que foi apanhada a plagiar um texto da New Yorker acabou a dizer que o tinha feito «com amor e carinho», lembram-se? Sim, foi depois de ter metido os pés pelas mãos ao tentar explicar o que não tem explicação. Deve ser por isso que desta vez nem se deu ao trabalho de se justificar.
Cinco meses após o «arrastão» da praia de Carcavelos, a Alta Autoridade para a Comunicação Social decretou que a «generalidade dos meios de comunicação social» deu um tratamento «claramente discriminatório» ao desmentido da polícia sobre o alegado envolvimento de 400 pessoas de origem africana que, afinal, «não excederam os 50». Repito: cinco meses depois do «arrastão». A Alta Autoridade acha que os media deveriam ter assumido «publicamente o seu erro» e «formulado um pedido de desculpas» em vez de «praticamente omitir ou menorizar» o desmentido da polícia. Tendo em conta a «evidente falta de rigor informativo», «isenção» e «objectividade», que terão levado a acções de «racismo e xenofobia» e feito passar «para o estrangeiro uma imagem errada do espírito de convivência interracial e de paz social que se vive em Portugal», a decisão parece-me que não poderia ter sido outra. Mas já não se percebe por que razão levou cinco meses a tomar uma decisão destas, e ainda menos que se trate de uma decisão de alcance nulo.
23 de novembro de 2005
Um dia destes publiquei um texto acerca do presidente iraniano que identifiquei como sendo o presidente sírio. Ontem chamei Daniel Sharon ao primeiro-ministro israelita em vez de Ariel Sharon. Valeu-me em ambos os casos a pronta intervenção do meu amigo Rui Geraldes, que me livrou do mais que provável sarrafo. Curiosamente, os enganos registaram-se em textos onde defendi o Estado de Israel. E ainda dizem que há uma conspiração judaica para dominar o Mundo.
22 de novembro de 2005
Ariel Sharon, o monstro, decidiu que a principal prioridade de Israel é alcançar a paz com os palestinianos. Ariel Sharon, o terrorista, é o responsável pelo desmantelamento dos colonatos de Gaza, um passo importante no caminho para a paz com os palestinianos. Ariel Sharon, o falcão, anunciou a criação de um partido cuja principal prioridade é a paz com os palestinianos. Nada disto foi dito pela jornalista Alexandra Lucas Coelho no Público de hoje a propósito dos últimos desenvolvimentos na política israelita. Pelo contrário: preferiu atirar pedras a Sharon por interpostas pessoas. Sim, eu já ouvi essa história de que não há jornalistas imparciais, que a objectividade jornalística é impossível de alcançar e outros floreados do género.
21 de novembro de 2005
18 de novembro de 2005
Se eu quisesse ser cauteloso, diria que São Bernardo é um bom livro. Mas se eu quisesse dizer mesmo o que penso acerca deste Graciliano Ramos, o que me vai na alma após a última página, diria que São Bernardo é um livro magnífico. Curiosamente, li-o convencido de que o estava a fazer pela primeira vez, mas depois descobri que já o tinha lido há quase dez anos.
17 de novembro de 2005
Há séculos que não lia relatos de viagens dignos desse nome. Aconteceu-me com Para lá do fim do Mundo e Mundo de Outubro, ambos de Francisco José Viegas, na Volta ao Mundo de Outubro e Novembro. Já agora, quando é que as revistas de viagens resolvem apostar a sério em relatos de viagens em vez de reportagens enciclopédicas repletas de lugares-comuns?
Faz hoje 26 dias que encomendei meia dúzia de livros à LivrosNet. Como ainda os não recebi, resolvi mandar-lhes um e-mail para saber se havia algum problema com a encomenda. Isso foi na última sexta, e ainda não me responderam. Não me responderam e voltaram a não me responder a outro que, entretanto, lhes mandei. Será que vai ser necessário um requerimento? Uma cunha? Que saudades eu tenho da Byblos.
16 de novembro de 2005
Se o estado de emergência decretado pelos franceses tivesse sido nos EUA, o que já não se teria dito de Bush e companhia. Como é em França, e como a França é o «farol da civilização ocidental», não se fala das liberdades e garantias dos cidadãos. Mas a imposição do estado de emergência, em França ou noutro sítio qualquer, é um atentado às liberdades e garantias dos cidadãos, não é?
15 de novembro de 2005
Como notou o Eduardo Pitta, Rodrigues Maximiano fartou-se de dizer asneiras na entrevista que concedeu à Pública. Entre outras pérolas, o magistrado disse que, nos EUA, «a responsabilização dos médicos» é «de tal maneira que hoje ninguém opera ninguém», acabando os doentes por morrer por não terem quem os opere; que os EUA «não respeitam os direitos humanos»; que os EUA «não dão direitos de defesa»; que nos EUA «a investigação criminal é feita pela polícia»; que nos EUA não «há garantias nas cadeias; que tem dúvidas de que as pessoas nos EUA tenham o direito de se defender. Enfim, o ex-Procurador-geral Adjunto fez um retrato verdadeiramente pavoroso da justiça em terras do Tio Sam. Mas o mais espantoso de tudo isto é constatar como um magistrado tão experimentado como ele seja tão ignorante sobre o que se passa nos EUA. Sim, porque não me passa pela cabeça que Rodrigues Maximiano esteja a mentir descaradamente.
11 de novembro de 2005
Raramente se vêem notícias dos médicos portugueses que não sejam para anunciar mais uma greve. Ouvir o bastonário da Ordem dos Médicos pedir «mais rigor» na avaliação da prática médica nos casos de litígio judicial e um «maior esforço por parte da classe para disponibilizar informação» em casos de má prática, alegando que «só assim é possível defender os médicos que trabalham bem», é uma atitude que se saúda. Mas não deixa de levantar uma questão: quer isto dizer que a norma é não haver uma avaliação séria e não disponibilizar informação em caso de erros ou negligência?
10 de novembro de 2005
Confesso que a campanha eleitoral para a Presidência da República está a ser mais divertida do que eu imaginava. Não há dia que Mário Soares não lance uma farpa contra Cavaco Silva, e não há dia que Cavaco Silva não deixe Mário Soares a falar sozinho. Agora, Cavaco é um «candidato esfinge» só porque se recusa a entrar no jogo de Soares. Vão por mim: ainda vamos ver Mário Soares a fazer o pino só para chamar a atenção.
9 de novembro de 2005
Quando não se tem mais nada para dizer sobre o problema francês e não se pode culpar George W. Bush (ou os americanos) pela onda de violência em França, vale tudo o que está à mão. Até absurdos como este.
Que me desculpe o autor, que me desculpe a revista onde foi publicada, que me desculpe quem se sentir lesado por outra razão que eu não vislumbro, mas a crónica de Ferreira Fernandes na Sábado da semana passada não pode limitar-se aos leitores daquela publicação. Até porque os bombistas suicidas voltaram a fazer das suas, desta vez na Jordânia, onde já se contam 67 vítimas mortais. De maneira que, com a devida vénia, aqui vai:
Hassan, o maldito
O título chamava-lhe “Hassan, bombista suicida”. Mas era um bombista assassino. Como é evidente, o termo bombista suicida apaga o essencial: os outros
Ferreira Fernandes
Sábado de 4 de Novembro de 2005
Fotos dramáticas em toda a imprensa inglesa - a mais dolorosa estava no Guardian. Morreu Best Mate, o triplo campeão da Cheltenham Gold Cup. Olhos esbugalhados, patas direitas dando de si, enquanto o jockey, que lhe adivinhou a agonia, saltava da sela e tentava segurá-lo. Em vão, era o fim de uma lenda, o mais amado dos cavalos da Grã-Bretanha. Best Mate caiu como viveu, durante uma corrida, em Exeter.
De um animal admirável, passo para uma cavalgadura: Hassan, palestiniano de 20 anos que também morreu há dias. Mau gosto na comparação? Não, simples tentativa de procurar uma certa equidade. É que a Hassan lhe desembarcou uma reportagem do Público lá em casa (publicada a 31 de Outubro, de autoria de Alexandra Lucas Coelho). Nela, fiquei a saber que, no dia da sua morte, Hassan foi gentil com a mãe. Esta minha crónica é para chamar bandido a Hassan. Que ganho eu com isso? Acalmo uma úlcera no estômago.
Naquela quarta-feira, Hassan acordou às quatro da manhã, quando o muezzin da mesquita vizinha lançou o primeiro apelo à oração. Cito o Público:
“Não queria que eu me levantasse para lhe dar de beber e comer”, lembra Ruqaia [a mãe]. “Disse que se arranjava sozinho.” Mas Ruqaia levantou-se e foi fazer chá. “Ele não quis beber nem comer nada. Disse que não tinha fome. Estava bem-disposto, a brincar. Despediu-se e foi embora.”
No jornal, há uma foto dele, imberbe, por trás de uns óculos escuros. Pode ser só moda de adolescente, mas eu sei que não é assim: aquilo é canalha que se esconde. Nova grosseria minha contra um jovem que acaba de morrer? É, confesso que sinto vontade de ofender, e vontade nenhuma de ser sereno e avisado. Dou o flanco? Seja. Tudo menos passar por leitor que leu e aceitou.
Sim, Hassan é assunto. Ir a casa dele e contá-la com a morte dele tão presente é assunto. Mas, deixem-me dizer, quando Hassan ocupa uma página de jornal só tenho paciência para “esta adolescente de T-shirt branca, jeans, rabo-de-cavalo e sardas, que agora se ajoelha na alcatifa com um priminho bebé, olhos transbordantes, os mesmos traços finos que se vêem no sorridente retrato de Hassan” que é a irmã de Hassan, só tenho paciência, pois, para sardas e olhos transbordantes quando o essencial me for contado. O que importa em Hassan não é a sua simpática família, mas o facto de ser um assassino.
Não que o amor paternal do dr. Joseph Goebbels pelas suas filhas de tranças louras não seja também assunto. Mas seria indecente que a memória do chefe da propaganda nazi fosse só essa. Na mesma medida me incomoda que eu saiba tanto sobre o humor de Hassan - “fazia-nos rir” -, a normalidade dele - “era um rapaz normal, brincava com as crianças da família...” - e tão pouco da maldade dele. Sobretudo, enoja-me que os seus reconheçam que ele tenha conseguido aquilo que queria: “Foi para Deus.” Seja lá o que for isso, isso era o que ele queria. Pelos vistos, conseguiu.
Poderia ser esta história de um parvo, se ele fosse só suicida (como no título da reportagem: “Em casa de Hassan, 20 anos, bombista suicida”). Se era isso que ele queria, por mim, tudo bem. Mas acontece que ele foi, na verdade, um bombista assassino. Não é o termo “bombista suicida”, transportando toda a importância só para Hassan, indecente? Não se apaga assim o essencial: os outros?
Os outros eram 36. Seis mortos e 30 feridos. Naquela quarta-feira, nenhum deles se despediu da mãe, amigo, mulher ou filho, sabendo ao que ia. Não tiveram a oportunidade, que teve Hassan, de ditar o seu destino. Hassan sabia e queria o que lhe aconteceu. Aos outros aconteceu o que não esperavam e alguns deles nunca virão a saber o que lhes aconteceu.
Os outros eram 36. Seis não têm a família com esse sossego de os ver ter aquilo que escolheram. Eles simplesmente escolheram ir a um mercado em Hadera - onde estava Hassan e a sua ideia de camelo de que Deus gosta de mártires. Os outros 30 estão no hospital, marcados para a vida. Uns cegos, outros amputados, vidas rasgadas.
Se não fosse o menino da sua mãe, o irmão da sardenta, o brincalhão com crianças da família, 36 pessoas - professores, bancários, reformados, desempregados - continuariam a ser qualquer coisa que eles, os seus, o acaso, a vida quisessem. Mas não, o assassino quis que eles passassem a ser para sempre isto: aqueles que, naquele momento, estavam mais próximos de Hassan.
Essa foi a primeira vitória de Hassan sobre os 36. Tão importante e definitiva que era escusado ser-lhe emprestada mais outra vitória. Mas, na verdade, ele teve outra: fiquei a conhecer o nome de Hassan. E não sei o nome de nenhum dos que foram escondidos atrás de um numero, o 36.
Hassan, o maldito
O título chamava-lhe “Hassan, bombista suicida”. Mas era um bombista assassino. Como é evidente, o termo bombista suicida apaga o essencial: os outros
Ferreira Fernandes
Sábado de 4 de Novembro de 2005
Fotos dramáticas em toda a imprensa inglesa - a mais dolorosa estava no Guardian. Morreu Best Mate, o triplo campeão da Cheltenham Gold Cup. Olhos esbugalhados, patas direitas dando de si, enquanto o jockey, que lhe adivinhou a agonia, saltava da sela e tentava segurá-lo. Em vão, era o fim de uma lenda, o mais amado dos cavalos da Grã-Bretanha. Best Mate caiu como viveu, durante uma corrida, em Exeter.
De um animal admirável, passo para uma cavalgadura: Hassan, palestiniano de 20 anos que também morreu há dias. Mau gosto na comparação? Não, simples tentativa de procurar uma certa equidade. É que a Hassan lhe desembarcou uma reportagem do Público lá em casa (publicada a 31 de Outubro, de autoria de Alexandra Lucas Coelho). Nela, fiquei a saber que, no dia da sua morte, Hassan foi gentil com a mãe. Esta minha crónica é para chamar bandido a Hassan. Que ganho eu com isso? Acalmo uma úlcera no estômago.
Naquela quarta-feira, Hassan acordou às quatro da manhã, quando o muezzin da mesquita vizinha lançou o primeiro apelo à oração. Cito o Público:
“Não queria que eu me levantasse para lhe dar de beber e comer”, lembra Ruqaia [a mãe]. “Disse que se arranjava sozinho.” Mas Ruqaia levantou-se e foi fazer chá. “Ele não quis beber nem comer nada. Disse que não tinha fome. Estava bem-disposto, a brincar. Despediu-se e foi embora.”
No jornal, há uma foto dele, imberbe, por trás de uns óculos escuros. Pode ser só moda de adolescente, mas eu sei que não é assim: aquilo é canalha que se esconde. Nova grosseria minha contra um jovem que acaba de morrer? É, confesso que sinto vontade de ofender, e vontade nenhuma de ser sereno e avisado. Dou o flanco? Seja. Tudo menos passar por leitor que leu e aceitou.
Sim, Hassan é assunto. Ir a casa dele e contá-la com a morte dele tão presente é assunto. Mas, deixem-me dizer, quando Hassan ocupa uma página de jornal só tenho paciência para “esta adolescente de T-shirt branca, jeans, rabo-de-cavalo e sardas, que agora se ajoelha na alcatifa com um priminho bebé, olhos transbordantes, os mesmos traços finos que se vêem no sorridente retrato de Hassan” que é a irmã de Hassan, só tenho paciência, pois, para sardas e olhos transbordantes quando o essencial me for contado. O que importa em Hassan não é a sua simpática família, mas o facto de ser um assassino.
Não que o amor paternal do dr. Joseph Goebbels pelas suas filhas de tranças louras não seja também assunto. Mas seria indecente que a memória do chefe da propaganda nazi fosse só essa. Na mesma medida me incomoda que eu saiba tanto sobre o humor de Hassan - “fazia-nos rir” -, a normalidade dele - “era um rapaz normal, brincava com as crianças da família...” - e tão pouco da maldade dele. Sobretudo, enoja-me que os seus reconheçam que ele tenha conseguido aquilo que queria: “Foi para Deus.” Seja lá o que for isso, isso era o que ele queria. Pelos vistos, conseguiu.
Poderia ser esta história de um parvo, se ele fosse só suicida (como no título da reportagem: “Em casa de Hassan, 20 anos, bombista suicida”). Se era isso que ele queria, por mim, tudo bem. Mas acontece que ele foi, na verdade, um bombista assassino. Não é o termo “bombista suicida”, transportando toda a importância só para Hassan, indecente? Não se apaga assim o essencial: os outros?
Os outros eram 36. Seis mortos e 30 feridos. Naquela quarta-feira, nenhum deles se despediu da mãe, amigo, mulher ou filho, sabendo ao que ia. Não tiveram a oportunidade, que teve Hassan, de ditar o seu destino. Hassan sabia e queria o que lhe aconteceu. Aos outros aconteceu o que não esperavam e alguns deles nunca virão a saber o que lhes aconteceu.
Os outros eram 36. Seis não têm a família com esse sossego de os ver ter aquilo que escolheram. Eles simplesmente escolheram ir a um mercado em Hadera - onde estava Hassan e a sua ideia de camelo de que Deus gosta de mártires. Os outros 30 estão no hospital, marcados para a vida. Uns cegos, outros amputados, vidas rasgadas.
Se não fosse o menino da sua mãe, o irmão da sardenta, o brincalhão com crianças da família, 36 pessoas - professores, bancários, reformados, desempregados - continuariam a ser qualquer coisa que eles, os seus, o acaso, a vida quisessem. Mas não, o assassino quis que eles passassem a ser para sempre isto: aqueles que, naquele momento, estavam mais próximos de Hassan.
Essa foi a primeira vitória de Hassan sobre os 36. Tão importante e definitiva que era escusado ser-lhe emprestada mais outra vitória. Mas, na verdade, ele teve outra: fiquei a conhecer o nome de Hassan. E não sei o nome de nenhum dos que foram escondidos atrás de um numero, o 36.
8 de novembro de 2005
Aviso à navegação: quando é que vamos ver os dois pontos (:) nos textos da edição online do DN? Será que só me acontece a mim?
7 de novembro de 2005
O filho único, com menos de vinte anos, bonito, garboso e bom calção, de chapéu à mazantina, corria agora o Alentejo na sua égua baia, amando filhas de lavradores supostamente virgens (elas!), consolando viúvas e mal-casadas, e fazendo negócios de cereais, até que um dia, à força de trafulhices, foi malhar com os ossos na cadeia. Lembrou-se então de mim, havia anos que não nos víamos, telegrafou-me, e eu corri a acudir-lhe. Trouxe-o para Lisboa, incomunicável, guardado à vista pelo agente da Judiciária que só à custa de sacrifícios (meus) nos deixou trocar algumas frases. O caso era bicudo. Entre outras, ele tinha empenhado e vendido meia dúzia de vezes uma debulhadora a vapor, que nunca pagara. Consegui afiançá-lo. O advogado da firma, trouxa e meu amigo, aceitou a devolução da máquina e passou-me um termo de desistência da queixa e de toda e qualquer reclamação no foro cível. Os advogados dos restantes credores, sem entender, engalfinharam-se. Não havendo outros bens, de que lhes servia metê-lo na cadeia? Não viram vintém. Não me pergunte para onde ia o dinheiro: ele pagava a uns credores com o que ia subtraindo aos outros. Honrado nas contas! Arrumado o caso, e ele livre de vez, fi-lo encontrado com o pai no meu escritório. À despedida, já na rua, o velho, rubicundo de antigos sangues nórdicos, colarinho à-rais-te-parta sujo, roupa cor de pinhão enxovalhada, e charuto mastigado nos dentes, homem sério, recusou apertar a mão que o filho — «adeus, pai!» — lhe estendeu. O rapaz girou nos calcanhares, com o sorriso, e andou para nunca mais. Irreconciliáveis. Ao vê-lo ir, Rossio abaixo, o velho mudou a posição do charuto apagado nos beiços, esguichou para longe o cuspo negro, e comentou: «Este meu filho, e de uma magana, sempre é muito esperto!» Foi o responso ou Ite Missa est. E a mim, que suara para o livrar, nem obrigado me disse, nem um chavo ofereceu pagar-me, que eu, é claro, não teria aceitado: gente das nossas relações, quase família! Rodrigues Miguéis, O Fraque
4 de novembro de 2005
A carta que o embaixador de Portugal no Brasil resolveu publicar na imprensa brasileira em resposta ao comentário do escritor Miguel Sanches Neto sobre os escritores portugueses, que o Gávea transcreveu e outros comentaram, convenceu-me plenamente. Mas já não me convence o argumento de Seixas da Costa quando este diz que, na qualidade de cidadão, tem todo o direito de apoiar a candidatura presidencial de quem muito bem entender. Insisto no que aqui disse há uns dias: porque não há-de o presidente da República ou o primeiro-ministro, na qualidade de cidadãos, apoiar o candidato A ou o candidato B? E, se for essa a sua vontade, porque não há-de o cidadão Seixas da Costa pedir a demissão de Lula da Silva ou do presidente Bush? Será que a lógica não é a mesma? Quem é capaz de dizer onde está a linha que separa o cidadão do embaixador?
3 de novembro de 2005
A avaliar pela amostra do Gonçalo Soares, também publicada pelo Francisco José Viegas, tenciono ler o último Saramago logo que saia a tradução em checo.
2 de novembro de 2005
«Estou satisfeito por viver num país em que as instituições judiciais funcionam», disse Jorge Coelho, após a Procuradoria-Geral da República lhe ter garantido não haver qualquer suspeita sobre a sua pessoa. Ora, que Jorge Coelho esteja satisfeito por não ser suspeito ou por ter a consciência tranquila, compreende-se. Mas... satisfeito por viver num país em que as instituições judiciais funcionam? Por amor de Deus, não deve haver uma única pessoa que não saiba que a Justiça não funciona ou funciona mal e porcamente, pelo menos sempre que se mete com alguém com capacidade de se defender.
1 de novembro de 2005
Face ao terrorismo internacional, nomeadamente ao terrorismo pós 11 de Setembro, Freitas do Amaral acha que «não há nenhum conflito religioso» ou «guerra de religiões», apesar de admitir que «alguns líderes terroristas» justificam os seus actos com a existência de uma guerra de religiões. O ministro dos Negócios Estrangeiros explicou melhor o seu raciocínio: o livro sagrado do islamismo recomenda aos muçulmanos que abracem os judeus e os cristãos que se cruzem no seu caminho. Assim sendo, conclui, não há razão para alarme, muito menos para se falar em guerra de religiões. Acontece que, como Freitas do Amaral muito bem sabe, o Corão presta-se às mais variadas leituras, e não é segredo para ninguém que os terroristas islâmicos justificam os seus actos com passagens do Corão. Ou seja, a realidade insiste em desmontar a tese de Freitas do Amaral, mas é mais fácil fazer de conta do que enfrentar a realidade. Eu sei que «guerra de religiões» ou «choque de civilizações» são expressões fortes, porventura demasiado fortes para caracterizar o que se passa, mas quem duvida que estamos perante uma onda de violência justificada pela religião?
As constantes provocações de Mário Soares a Cavaco Silva — que Cavaco Silva sabiamente tem ignorado — mais parecem a postura de um candidato da extrema-esquerda à procura de protagonismo. Têm, porém, o mérito de demonstrar que Mário Soares se candidatou à Presidência da Republica não por achar que é útil ao País, mas porque tem um problema com Cavaco Silva. Os próximos episódios encarregar-se-ão de tirar as dúvidas a quem ainda as tiver.
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