31 de janeiro de 2006

Dezassete países árabes protestaram formalmente junto do Governo dinamarquês contra a publicação, num jornal, de caricaturas do profeta Maomé, exigindo que sejam «firmemente sancionados» os autores da proeza e que não volte a suceder. Vejam bem: dezassete países. Apesar da aparente firmeza do Governo local e de o jornal em causa ter afirmado que não abdicava do direito à liberdade de expressão, o Jyllands-Posten resolveu pedir desculpas aos muçulmanos. Isto é, a intimidação funcionou em pleno, e todos ficamos a saber que não se brinca com símbolos em nome dos quais há quem não hesite em mandar-nos desta para melhor.
Sobre a polémica em curso na blogosfera acerca da crítica literária, permitam-me que vos relembre um extracto de uma crítica literária de José Mário Silva publicada em Setembro de 2004.

30 de janeiro de 2006

Baptista Bastos anunciou a descoberta de António Sousa Homem, um ancião que escreve prosa «moça e fresca como uma alface». Trata-se de um «frequentador de clássicos» que não «tropeça no pronome nem se intimida com a preposição», diz ele, um conservador «mais cosmopolita do que os nossos provincianos citadores» e «um estilista de regalo». Também eu fiquei fascinado pela prosa do «reaccionário minhoto» desde a primeira vez que a li, provavelmente nas páginas de O Independente. Espero, agora, que Baptista Bastos não leve tanto tempo como eu a descobrir a verdadeira identidade do cronista.

27 de janeiro de 2006

Pior do que os blogues com música que eu não aprecio e a overdose de lugares-comuns por causa de Mozart, só os blogues com música que não dá para desligar. Uma verdadeira praga.
Sempre que fala do problema israelo-palestiniano, o Luís Rainha apanha por tabela. Não porque haja razão para isso, diz ele, mas porque são mal interpretados os textos que escreve. Um incompreendido, este Luís Rainha.

26 de janeiro de 2006

O Luís Rainha acha que o Hamas «é muito mais do que um grupo terrorista». O Hamas «gere uma intrincada rede social, com hospitais, creches, escolas e caridades diversas», diz ele. Pois é, mas também os bandidos que mandam nas favelas do Brasil gerem uma intrincada rede social, com hospitais, creches, escolas e caridades diversas, e nem por isso deixam de ser criminosos.

25 de janeiro de 2006

Absolutamente imperdível!
Onde é que anda a Ana Albergaria, que desde os incidentes de França não escreve uma linha? Terá andado a queimar carros e ido de cana? Espero não ser só eu com saudades.
Este senhor resolveu expor as misérias da espécie. Da espécie masculina, entenda-se.

24 de janeiro de 2006

O famoso «movimento de cidadania», um eufemismo que designa uma coisa que ninguém sabe o que é, provavelmente a começar pelo seu «mentor» (Manuel Alegre) e por quem lhe está mais próximo, promete não «ficar por aqui». Tudo isso por causa do milhão e tal de votos que Manuel Alegre conquistou no último domingo, e porque há quem pense que o candidato «deve fazer alguma coisa» com os votos que obteve. Ora, não me parece necessário ser um especialista em política para constatar que «o movimento de cidadania» que votou em Manuel Alegre mais não foi do que um acto de revolta que se esgotou com a votação em Manuel Alegre. Além disso, quem acredita que Manuel Alegre continuaria interessado num «movimento de cidadania» caso amanhã vislumbrasse a hipótese de chegar à liderança do seu partido? E quem já se não lembra das experiências semelhantes do passado? Movimentos de cidadania liderados por facções dos partidos, ou por políticos afastados do poder nos seus partidos, não vão longe nem costumam dar bons resultados.
Que haja quem não tenha gostado da vitória de Cavaco Silva, percebe-se e aceita-se. Mas dizer que o resultado de Cavaco Silva «é uma vitória politicamente fraca» e «em queda acentuada», que não deixa ao eleito «grande autoridade política para o intervencionismo presidencial», como disse Vital Moreira, é muito mais do que um sintoma de mau perder: é ridículo.

23 de janeiro de 2006

Insisto na questão que aqui levantei na última sexta-feira. À hora a que, em Portugal, já eram conhecidos os resultados das Presidenciais, ainda se votava na Costa Leste dos Estados Unidos. O próprio discurso do vencedor foi feito por volta das dez e meia da noite, uma hora e meia antes de fecharem as urnas. Como seria de esperar, à excepção de uma leve referência na TSF, ninguém atribuiu a menor importância ao caso. Mas imaginemos que estes votos eram decisivos.
Antes de mais, acabou-se. Acabou-se a campanha eleitoral, acabou-se o mais que duvidoso interesse dos candidatos pelo «Portugal profundo», acabou-se o folclore diário que os media abundantemente relataram. Esta foi a primeira boa notícia. A segunda boa notícia foi a derrota de Mário Soares. Contra todas as previsões, que davam Mário Soares como o único candidato capaz de ombrear com Cavaco Silva, o ex-presidente da República não só esteve longe de incomodar o candidato da direita como acabou com um resultado humilhante. A terceira boa notícia foi o resultado de Manuel Alegre face a Mário Soares, que certamente nem os incondicionais do candidato da «cidadania» esperariam tão generoso. Depois há outras notícias que, para mim, são menos interessantes. Por exemplo, a notícia que dá conta da vitória de Cavaco Silva logo à primeira volta, e a notícia da derrota do Partido Socialista. Se no caso de Cavaco Silva há pouco a dizer, a derrota do PS ainda vai dar muito que falar. Sim, porque ninguém acredita que não vão haver consequências, apesar de o secretário-geral se ter apressado a dizer que vai manter o rumo e calendário traçados.
É certo e sabido que os resultados das eleições se prestam a que cada um faça a leitura que mais lhe convém. Mas há uma coisa que é por demais evidente: o excelente resultado de Manuel Alegre e o péssimo resultado de Mário Soares deveram-se, sobretudo, ao voto dos revoltados. Daí que me pareça um absurdo perguntar a Manuel Alegre o que tenciona fazer com os votos que obteve, pois a função dos votos que obteve esgotou-se no dia da eleição.

20 de janeiro de 2006

Como já aqui disse e expliquei, não vou votar nas Presidenciais do próximo domingo. Mas não quer isso dizer que as Presidenciais não me interessam, e que me seja indiferente o resultado que delas sair. Pelo contrário. Como qualquer cidadão com um mínimo de interesse pela política, também eu gostaria que se concretizassem determinados cenários e não se concretizassem outros. Gostaria, por exemplo, que Mário Soares perdesse as eleições, de preferência por muitos e com menos votos que Manuel Alegre. Não que eu esteja convencido de que Manuel Alegre seja melhor candidato que Mário Soares, como penso não estar convencida grande parte dos eleitores que se preparam para votar em Manuel Alegre. As razões são outras, e já tive ocasião de as explicar em detalhe. O resto — e o resto inclui a mais que provável vitória de Cavaco Silva logo à primeira volta — não me entusiasma, nem me perturba.
Salvo casos excepcionais, os portugueses residentes no estrangeiro vão poder votar nas Presidenciais do próximo domingo nas áreas onde residem. Tirando as áreas onde a imigração portuguesa não tem grande expressão — e, por essa razão, onde não existem representações consulares —, a votação far-se-á nos moldes habituais, isto é, entre as oito da manhã e as sete da tarde. Ora, devido à diferença horária entre estes locais e Portugal, há um pequeno problema. O problema de já serem conhecidos os resultados das eleições antes de votar. Exemplos? Um eleitor residente na Costa Leste dos Estados Unidos que resolve votar às seis e meia da tarde de domingo (onze e meia da noite em Lisboa) já sabe quem ganhou e quem perdeu. Um eleitor residente em Caracas que resolve votar às seis e meia da tarde (meia noite e meia em Lisboa) já viu os discursos de quem ganhou e de quem perdeu.

18 de janeiro de 2006

Só vi metade do último Prós e Contras (e já em repetição), mas deu para ficar com uma dúvida: Clara Pinto Correia é mesmo assim, ou estava armada ao pingarelho?

17 de janeiro de 2006

O episódio que envolveu Mário Soares e o ministro da Defesa, com o primeiro a pedir explicações ao segundo e o segundo a dar-lhas, diz mais do candidato do PS que todas as suspeitas de que Cavaco Silva possa intrometer-se na actividade governativa.

16 de janeiro de 2006

O argumento de que Mário Soares não devia candidatar-se porque está velho é, obviamente, estúpido. Mas o argumento que pretende demonstrar que Mário Soares é rejeitado pelo eleitorado por essa razão não é menos estúpido. Não pretendo adivinhar o que vai nas cabeças dos que rejeitam Mário Soares, mas parece-me que a questão da idade é bem capaz de lhe render alguns votos em vez de lhos tirar. O problema de Mário Soares é outro. O problema de Mário Soares é o PS estar dividido por duas candidaturas, ter passado uma rasteira impensável ao camarada Manuel Alegre, ter-se candidatado quando tinha garantido que não o faria e sem que se entenda porquê, ter optado por uma agressividade gratuita contra Cavaco Silva, por achar que o ex-primeiro-ministro é um ignorante por comparação com a sua pessoa. Estes e outros é que são os problemas de Mário Soares, não a idade.
Não consigo entender por que razão os colunistas devem identificar-se como apoiantes do candidato presidencial A ou do candidato presidencial B caso sejam apoiantes do candidato presidencial A ou do candidato presidencial B. É que, segundo esta lógica, também os colunistas devem identificar o partido que apoiam sempre que opinam sobre política em períodos de eleições Legislativas ou o clube da sua simpatia quando falam de futebol. Além disso, esta prática tem, pelo menos, um senão: sabendo-se antecipadamente em que clube jogam os colunistas, os argumentos tendem a ser valorizados ou desvalorizados em função de quem os diz e não do que se diz. Ou seja, a declaração de interesses acaba por ter efeito contrário ao desejado.
Eu tenho todo o respeito por Medeiros Ferreira, mas este post é hilariante. O povo de esquerda tem-se escondido das sondagens? Essa é boa! Mas há mais. No dia anterior, Medeiros Ferreira escreveu isto: «A Justiça e a Comunicação Social são actualmente os dois problemas mais graves do regime democrático.» A Comunicação Social um dos problemas mais graves do regime democrático? Então não haverá, em Portugal, problemas mais graves que a Comunicação Social?
«Os dois principais culpados por estas crises [da justiça] e incidentes [fugas de informação, violação do segredo de justiça, etc.] são a menina da fotocópia e o rapaz da informática. Ela é nova, morena, filha de pais rústicos, usa calças justas, tem moralidade duvidosa, masca pastilha elástica, já trabalhou num centro comercial, fuma às escondidas do patrão, pertence a um grupo de esquerda, dá-se bem com a gente da comunicação social, dorme com um jornalista de direita, trabalha numa instituição nacional por onde passam segredos e informações delicadas, exerce funções menores de assistente de secretariado e arredonda os fins de mês com umas fotocópias que fornece à imprensa, a advogados, a polícias e a um ou outro juiz. Ele é novo, alto, filho de pais divorciados, desgrenhado, nunca usou gravata, fuma uns charros à noite, é capaz de penetrar em qualquer computador, navega nos sistemas herméticos dos bancos e dos partidos, frequenta os estádios de futebol, simpatiza com um grupo de direita, dorme com uma jornalista de esquerda, diverte-se a mandar vírus a uns inimigos seleccionados, trabalha numa grande empresa de comunicações, é considerado um talento excepcional para a electrónica, frequenta os bares povoados por assessores de gabinetes ministeriais e, por divertimento e dinheiro, vai coleccionando uns ficheiros informáticos que comercializa cuidadosamente. A menina especializou-se em papel. O rapaz em disquetes e CD.» António Barreto, Público
Para umas boas gargalhadas.

13 de janeiro de 2006

Estão criadas todas as condições para que o processo Casa Pia acabe em águas de bacalhau. Pior: estão criadas todas as condições para que o processo Casa Pia acabe com algumas das vítimas transformadas em culpados. É claro que as alegadas escutas telefónicas que terão sido feitas a pessoas sem aparente ligação ao processo dão que pensar. Mas uma coisa é certa: da forma como as coisas estão, a Justiça tende a proteger os mais fortes e a incriminar os mais fracos, e quem pode defender-se acaba ilibado. A classe política está a ser alvo de escutas telefónicas com objectivos pouco claros? É grave. Mas quem é que se atreve a fazer escutas telefónicas aos mais altos representantes do Estado sem ter fortes motivos para tal e que não saiba no que está a meter-se? Não me constando que se trata de gente com vocação suicida, a questão dá, também, que pensar. Isto para dizer que a verdade sobre as escutas telefónicas deve estar algures no meio do ruído, nomeadamente no meio do ruído à volta do processo Casa Pia, que não tem cessado desde o início. Ruído que, com intenção ou sem ela, só tem servido para descredibilizar todo o processo. Razão pela qual repito o que disse no início: estão criadas todas as condições para que o processo Casa Pia acabe em águas de bacalhau.

12 de janeiro de 2006

A notícia da tragédia que hoje teve lugar em Meca — 345 mortos, até ver — trouxe-me à memória a semana e tal que no ano transacto dois irmãos menores (14 e 8 anos) passaram sozinhos num apartamento aqui bem perto enquanto o pai deles fazia uma peregrinação a Meca. Arrepia-me só de pensar que lhes podia ter sucedido alguma coisa de grave durante esse tempo, e que uma das vítimas que quase sempre há nessas alturas podia ter sido o pai deles.

11 de janeiro de 2006

Já só faltam dois meses (cálculo meu) para chegar o Sony Portable Reader, que me promete aposentar o RCA eBook, que me aposentou o Rocket eBook. Não sabem do que se trata? Pois não sabem o que perdem. Que tal fazer-me acompanhar diariamente por centenas de livros (e outros textos) num aparelho do tamanho de um livro de bolso? Que tal ler sem luz natural ou artificial, modificar os caracteres de modo a ajustar ao tamanho que mais me convém e à forma que me parece mais agradável? Mas há mais, muito mais.

10 de janeiro de 2006

O ministro da Justiça do Governo de José Sócrates resolveu advertir os portugueses para o facto de o sistema político português não «aguentar» dois poderes executivos, razão pela qual apela aos eleitores para que não cometam um «erro de casting» na escolha do próximo Presidente da República. «Nas próximas eleições presidenciais, a escolha é entre a estabilidade e a instabilidade. Só a candidatura de Mário Soares assegura a estabilidade», concluiu Alberto Costa. Ora, isto merece um comentário. Em primeiro lugar, dizer que a eleição de Cavaco Silva (ele não se referiu a Cavaco Silva, mas toda a gente percebe que é de Cavaco Silva que está a falar) vai provocar instabilidade ou criar um segundo poder executivo é um juízo de intenção baseado em nada e coisa nenhuma. Depois, como compreender que um ministro, ainda por cima o ministro da Justiça, ande a enganar os portugueses? Eu sei que a política está cheia de casos destes, mas como pode um ministro dar-se ao respeito fazendo figuras destas?

9 de janeiro de 2006

No começo da campanha eleitoral para as Presidenciais — sim, a gente pensava que a coisa estava a acabar mas a lei diz que só agora começou — José Sócrates apelou ao voto em Mário Soares «em nome da estabilidade política». António Costa considera indesejável a eleição de um Presidente da República que «se queira substituir» ao primeiro-ministro. Curiosamente, ou talvez não, Mário Soares nada disse. A partir de agora, o candidato do PS só fala com os jornalistas através do assessor de imprensa. Não, não é de black-out que se trata, mas de uma medida destinada a «disciplinar os contactos com os jornalistas». É o tudo por tudo nas hostes socialistas, que procuram evitar a todo o custo um resultado que se adivinha desastroso para Mário Soares e para o PS. Desastroso face a Cavaco Silva, vergonhoso caso tenha menos votos que Manuel Alegre. Sim, porque a derrota de Mário Soares já não se discute, e tudo leva a crer que será uma derrota estrondosa. Até Vasco Pulido Valente, apoiante de Mário Soares, já admitiu a derrota do candidato do PS, e ele não costuma enganar-se nestas coisas. Já o argumento de que Mário Soares perde por ser velho (a «sociedade em que vivemos não gosta de velhos», disse ele no último sábado), parece-me fracote.

6 de janeiro de 2006

As gaffes de Mário Soares já se tornaram uma instituição. Um discurso ou uma declaração aos media que não contenham pelo menos uma gaffe (ultimamente são duas e três de cada vez) começa a ser uma excepção. Os jornalistas divertem-se com a situação, os admiradores acham que só lhe fica bem, os opositores não se atrevem a abordar o assunto com receio de serem acusados de falta de humor. Ora, imagine-se qualquer outro dos candidatos presidenciais a cometer gaffes. Teriam a mesma complacência de que goza Mário Soares? Evidentemente que não teriam. Mário Soares chegou a um ponto em que tudo se lhe perdoa, ou já ninguém o leva a sério?

5 de janeiro de 2006

Concordo com Mário Soares quando ele diz que «há uma falsa unanimidade à direita» à volta da candidatura de Cavaco Silva, mas isso é capaz de não ser muito lisonjeiro para o candidato do PS. Afinal, isso só demonstra que o eleitorado de direita prefere um mau candidato a um candidato ainda pior.
Enquanto Mário Soares elogia José Sócrates, dizendo que ele é bom quando ainda há pouco dizia o contrário, Jorge Coelho procura enganar os portugueses. Diz o dirigente socialista que a eleição de Cavaco Silva pode pôr «em causa tudo aquilo em que [os portugueses] votaram em Fevereiro e fazer com que tudo volte para trás», que a continuidade do Governo de José Sócrates fica ameaçada com a eleição de Cavaco Silva. Ora, será que Jorge Coelho acredita realmente neste cenário? E, já agora, haverá alguém que acredite? O desespero nunca foi bom conselheiro, mas há erros que até os desesperados não cometem. Este, por exemplo, além de não convencer ninguém, é bem capaz de ser contraproducente.

4 de janeiro de 2006

Não havia mapas, nem sinais nas estradas: só trevas e confusão. Perdemo-nos uma dúzia de vezes. Outras tantas fizemos marcha-atrás. Encontrávamo-nos de repente em verdadeiros becos sem saída. Batíamos então à porta de casais sonolentos, onde ladravam cães, indagando se «aquela» era a estrada do Porto: não era. E andávamos nisto. A única vez que nos pusemos de acordo, incluindo eu, foi para enfiarmos por uma estrada que nos teria levado a Oliveira do Hospital ou até Espanha, se a certa altura o estado do pavimento, onde o Chevrolet roncava e balançava como no mar alto, não nos tivesse feito sentir que por aquele andar nunca mais chegávamos à Capital do Norte. Para tudo tornar mais melancólico e desolador, a chuva desabou de súbito, torrencial. Houve gritos de protesto contra a doçura lendária do nosso clima. O limpador do pára-brisas, enferrujado, não funcionava. Um dos faróis pôs-se a tosquenejar. Em breve a carripana metia água pelo tejadilho, e as rodas afundavam-se até aos eixos em poças turvas. Íamos em primeira. O Fonseca irritou-se com a esposa e mandou-a onde ele nunca tinha ido, apesar de gostar de viagens e de ter aquele Chevrolet capaz de tudo.
Rodrigues Miguéis, Uma Viagem na Nossa Terra
Bem-vinda!

3 de janeiro de 2006

É curioso ver Mário Soares protestar contra o que designa por «grandes grupos de comunicação social», alegando que estes procuraram convencer os eleitores de que Cavaco Silva é a melhor escolha. Curioso porque sempre se disse que Cavaco Silva tinha má imprensa, enquanto é sabido que Mário Soares sempre gozou da simpatia dos media. Mas, com a entrevista à TSF, onde afirmou que os grupos de comunicação social «meteram na cabeça» que «deveriam apoiar Cavaco Silva» — facto que, segundo ele, os investigadores acabarão por demonstrar —, já começa a ser de mais. Pena é que as coisas fiquem por aqui, apesar de a SIC ter pedido ao candidato socialista que apresente provas do que diz. É que, assim, ficamos sem saber se é verdade o que diz Mário Soares, ou se está pura e simplesmente a mentir. Seja lá o que for, uma coisa parece certa: quando as coisas não correm bem, a comunicação social costuma ser o bode expiatório. É a velha estória de atribuir a terceiros o que são culpas próprias.

2 de janeiro de 2006

O novo ano começou com álcool a mais e a notícia onde se lê que O Código Da Vinci é uma obra magistral. Leram bem: magistral. O velho findou com um amigo meu a queixar-se de que tinha recebido uma chamada telefónica de uma pessoa que julgava que já tinha morrido e comigo a pensar nas vezes que isso já me sucedeu. Tirando estas miudezas, também eu escolhi os melhores livros que li em 2005. Que foram os seguintes: Longe de Manaus, de Francisco José Viegas, O Pintor de Retratos, de Luiz Antônio de Assis Brasil, e Golpe de Mestre, de Michael Frayn. Menção especial para Rodrigues Miguéis, um escritor tão injustamente esquecido e de quem eu li meia dúzia de livros o ano que findou.